OS QUATRO PLANOS

Dentre os versos mais belos e “bem sacados” que já me experimentaram as sensações e todos os sentidos, destaco um de minha preferência, da memorável poetisa Cecília Meireles, que diz “Tem sangue eterno a asa ritmada...”.

Apesar de à primeira vista parecer simples, muito simples mesmo, essa cristalina simplicidade obrigou-me a viajar, e a devanear por momentos a fio, buscando atingir, pelo menos, um grau mínimo dessa profundidade.

Separei cada palavra do verso, para dissecar-lhe o sentido, percebendo que as quatro palavras expressivas que o compõem, possuem quatro planos ou ângulos. Tal fato trouxe-me à memória o igualmente notável João Cabral de Melo Neto, com seu metapoema “Catar Feijão”, onde o autor compara o ato de escrever (jogar as palavras na folha) ao de colocar o feijão no alguidar (vaso de uso doméstico), fazendo a seleção entre o que serve e o que está sobrando; retirando o que boiou na água, separando o que é leve, oco e palha, do que é denso e significativo, conforme ocorre com a feitura de um poema.

Voltando ao verso de Cecília, num primeiro momento, o sangue, cuja função é conduzir anticorpos, nutrientes, oxigênio e outros aos tecidos do corpo pode representar a vida, a prole, a doação e o amor: o amigo dá a sua vida (sangue) pelo seu amigo e isso é bíblico.

O que dizer do eterno? Aquilo que não tem princípio, nem fim; do Alfa ao Ómega, de Gênesis ao Apocalipse, o amor supremo do Pai. E das asas? Os membros inferiores de aves e insetos, sustentação e equilíbrio de aeronaves; razão do voo de aves itinerantes, trazendo para perto lembranças sensoriais e as eternizando no aconchegante ninho do coração.

O que seria dos três planos, não houvesse um ritmo, uma cadência, uma alternada frequência de movimentos em infinitos vai-e-vem e, no presente caso, uma sucessão de tônicas e átonas regulares no verso que cabe direitinho no poema, ou na música. O ritmo é o corpo em movimento, o som nas mais variadas frequências, como o dorso do ginasta que se move na cadência lúdica do prazer.

Ver nuance tão variada num único verso ameniza a agrura de certos fatos e momentos, sentir que, realmente, “tudo vale a pena se a alma não é pequena”, quando podemos inverter negativos em positivos, acre em doce, inferno em paraísos de sol, porque o instante existe.

Podemos afirmar que a poesia, por tudo que ela representa, não apenas convida a divagar e a reviver, ou a meditar no que seja ou não eterno, também se realiza e nos realiza no grafismo, na simbologia de formas que a tornam visual e concreta, sonora e visceral, como um quadro de pintura, em todas as suas dimensões, movimentos, matizes e percepções, verdadeiro objeto artístico.

Por tudo isso, digo, parafraseando o poeta Drummond, “a poesia deste momento inunda minha vida inteira”.