O pastor, as ovelhas e o estábulo ambulante

“Vivi, estudei, amei e até cri,

E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.

Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,

E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses

(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);

Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo

E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente”

Tabacaria, Álvaro de Campos

O transporte público em Brasília é uma espécie de expurgo, e imagino que este por si só deva, nos espíritos espiritualistas, exercer bem a função de cobrador de pecados, de emissário do Karma. Definitivamente não creio que pessoas que pegam buzão por aqui desçam no inferno: são ungidos merecedores do Reino dos Céus por um lado, ou por outro, destinados a uma encarnação melhor, quem sabe em outro pico fora daqui, tipo a mítica Curitiba.

O fato é que coisas estranhas acontecem, e dia desses me deparei com uma árvore na contramão, com faróis apagados, vindo em minha direção. Choquei-me. Claro que não levei o caso adiante pois não sou tão imbecil ao ponto de processar a Mãe Natureza, então, paguei todo prejuízo e fiquei sem carro por longos dez dias. Expurgo, expiação.

Mas isso tem lá suas vantagens também, sobretudo pra mim, que encontro na curiosidade sobre o outro um bálsamo para a apatia de mim mesmo, e a rodoviária do Plano Piloto é um celeiro de “outros” tão formidável que me entorpeceu logo ao primeiro fim de tarde na volta do trabalho. São pessoas como formigas (que comi, quando criança, e nem foi para benefício dos olhos) orgânicas e numerosamente espremidas que são, ou como elétrons numa motherboard de concreto, inconscientes que parecem ser e direcionadas como sem dúvidas são, como eu (não apenas as gengivas e as unhas, como mesmo!). Então são outros sendo eu mesmo, tô ligado que vocês entendem...

E aí tive que subir no “coletivo”, olhando todo mundo e intuindo que a maldição de ninguém sentar ao meu lado – fundamentalmente as meninas bonitinhas – deveria estar ativa ainda. Antecipei-me e me sentei do lado da mais ajeitadinha, pra garantir, headphone nas alturas (hosana!), até que entra o típico pedinte de estória pronta na parada. Geralmente não paro para escutar e apenas dou um trocado porque admiro a profissão, mas dessa vez foi diferente. O cara era um mendigo muito magro, muito sujo e muito doido, crack (reconheço um nóia à distância, mesmo de costas e pela tv), mas a performance messiânica e o que ele trazia na mão me fez retirar os fones e escutá-lo: uma bíblia.

Me amarro em bíblias e nas viagens dos antigos profetas que tomavam cogumelos e fumavam haxixe. A dele era uma das Testemunhas de Jeová, antiga, capa de couro vermelho texturizado, artigo de luxo. Escutei e fiquei muito impressionado. Começou com as típicas desculpas por estar incomodando e ressaltou que poderia estar fazendo qualquer sacanagem com outras pessoas, mas não, estava ali - sacaneando a gente. Em seguida trouxe pro palco o seu diferencial, erguendo a bíblia e a voz começou a lembrar que quase todos ali, ou provavelmente todos, se diziam cristãos, “mas o eram”? O cara tinha vocabulário atípico, uma mistura de gírias da rua com português arcaico absorvido de seu contato com as escrituras, e essa mistura gerava expressões como ”...em verdade vos digo galera” ou “o Fogo do Senhor vai encontrar vocês na intuca onde cês tiverem, tá ligado?”. Pirateio tudo: livro, música, vídeos... agora os textos desse indivíduo vou preservar que ele merece. Não é como Chico, Jorodowsky ou Nietzsche, ele merece.

Em seguida, após fazer umas ameaças usando textos bíblicos que ora lê, ora puxa Deus sabe-se lá de onde, começa a usar de um ardil muito inteligente: ele é imundo e fedorento, e aproveita-se disso caminhando – GRITANDO! – e se encostando nas pessoas estejam elas em pé ou não, deliberadamente. E quando vai até o fim do ônibus e volta com seus braços levantados exalando o próprio enxofre dos seis infernos e gritando respingando sua saliva - livre de máculas contagiosas - já recebe umas moedas. Mas nada comparado ao que recebe quando finge pretender fazer esse passeio de novo: o que vi foi um dízimo espontâneo belíssimo, com dezenas de pessoas se levantando de seus lugares e levando-lhe moedas ou mesmo arremessando-as. Lindo, cristão!

Quando olhei de lado vi algumas dessas pessoas aliviadas com aquela expressão altruísta sabem? Aquela de gente boa que faz o bem? Pois é... O cara é muito eficiente; desce logo na primeira parada após a rodoviária e volta apressado para seu ponto de partida literal. Deve ter arrecadado uns quinze conto e com eles há de gerar mais textos maravilhosos e ameaçadores, em fumaça forjados.

Se dei algo? Claro: além de ser um dos primeiros, estava sentado do lado da mais jeitosinha, minha atenção merecia um foco novo, e o cara era um profissional de respeito. Quanto? ”...numa rocha temos que nos firmar, irmãos, para construir uma casa de base forte. Numa pedra! Bota fé?”