NENÊ

Era uma mulata forte, bonita, de bem com a vida simplória que Deus lhe conferiu, nascida numa família pobre e, portanto, grande como era formal na sua época. Seus pais negros e descendentes dos libertados do cativeiro se instalaram ali perto da casa do vovô.

Como também era vulgar no viver daqueles longínquos anos dos quarenta, as meninas que poderiam ajudar nas fainas caseiras já tinham sua escala aprovada e arrumavam o pouco que a casa tivesse; varriam o assoalho, cuidavam do interior e também eram responsáveis pela limpeza do terreiro poeirento ou lamacento dependendo das chuvas que eram abundantes então. Tarefa também reservadas às meninas era apalpar as galinhas, separar as ovadas para o local das poedeiras e as demais soltas no espaço ao redor da casa. Lavar, passar roupas... A maxambomba, o calor das brasas, fumaça irritante, buscar água da cacimba...

Aos meninos cabia a obrigação de catar lenha e fazer outros serviços quando a sua desenvoltura física já permitia, como debulhar o milho para moagem em fubá e cozinhar em grandes tachos com o que mais tivesse: abóboras, inhame, mandioca, enfim tudo o que se ali colocasse seria triturado pelos dentes dos porcos nas cevas e das porcas criadeiras.

À medida que cresciam, outras tarefas eram delegadas, normalmente nas lavouras que tinham época certa para plantar e colher. Colégio não era prioridade; capinar, roçar, apanhar o café e cortar a cana significava sobrevivência. Estudo nunca encheu barriga de ninguém, era uma das máximas ouvida e imposta.

Nenê, uma das meninas, se tornou moça e não aceitou ficar em casa o dia todo caminhando a mesma trilha da sua mãe já cansada da labuta diária e enfadonha. Preferia ir para a roça como os homens. Mulata forte, alegre, bonita se destacava do restante. Nos cafezais não havia quem mais coroasse os cafeeiros preparando-os para colheita; nos eitos dos canaviais nem mesmo alguns homens a acompanhavam na lida da capina ou no corte das canas. Quase sempre varava os eitos em primeiro lugar.

Quando chegava ao topo, apoiava os braços no cabo da enxada e cantava como às vezes fazia enquanto subia os morros escorregadios carpindo aqui e ali as ervas intrometidas. Desciam todos juntos e no reinício, a Nenê com pouco tempo já se distanciava. Uma verdadeira máquina no trabalho braçal.

Mas os tempos foram mudando para aquele corpo de mulher. Ela, submissa aos instintos da conservação, também não resistiu aos reboliços dos hormônios agora produzidos nas suas glândulas. Sem nenhuma orientação, caiu na traiçoeira armadilha da natureza egoísta e estimulante da procriação. Engravidou-se.

Àquela época, isso era o máximo de desonra que uma família poderia suportar. Nenê foi expulsa da casa dos pais. Não era mais digna de conviver, pela grande traição, com eles e os demais irmãos. Assim era. Mesmo com tudo isso tendo acontecido, continuou seu trabalho e a sua cantoria. Cantar não era somente alento; cantar significava vigor para a bela mulata.

Morreu durante o trabalho de parto. Alguns acharam que a bela e alegre Nenê não morreu naquela noite agourenta. Juravam ainda ouvir seus cantos nas grimpas dos morros dos cafezais e canaviais.

Naquelas noites mornas do verão ou nas friagens do inverno, quando a lua estava a pino despejando sobre a Terra todo seu fulgor, o vento paradinho, nem um tiquinho de sopro para fazer tremer as folhas das amoreiras ou levar para longe o aroma da dama-da-noite, ela entoava e se ouvia desde longe o seu cantar. Toda a natureza então se calava. Arrependida?

Não eram mais aqueles heroicos cantos da guerreira ou os das ladainhas aos seus santos protetores enquanto varava os eitos nas lavouras. Agora o seu cantar era de suaves, meigas e soluçantes cantigas de ninar:

-Boi, boi, boi; boi da cara preta...

Até o primeiro canto dos galos. Então apagava. Cantoria silente. Reclamo geral dos elementos: o assobio das brisas nos ramos das árvores e nas finas e cortantes folhas dos coqueiros. O perfume da dama-da-noite espraiava-se por todos os cantos migrando em direção às grimpas buscando ninguém. A magia encerrava-se.

Pois os bois, entrando naquelas plagas após a derrocada das grandes lavouras, anteciparam a invasão dos pastos nas terras, estorvos para Nenê e seu filhote ainda no ventre. Tantas e tantas vezes foram para as labutas diárias.

As pastagens intrometidas, engolindo de roldão as plantações, quebraram o encantamento da mulata faceira. Nunca mais cantou ao luar das madrugadas ou, decerto, vagou à toa por lá. Partiu de vez.

Terça-feira, 17 de junho de 2008.

Dbadini
Enviado por Dbadini em 24/04/2010
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