O VELHO QUIRINO

Tenho-o ainda hoje na minha memória. Fecho os meus olhos e o vejo sentado na soleira da porta de um pequeno quarto existente na parte dos fundos da venda. Lembro-me muito bem. Talvez ainda remanescente dos últimos escravos libertados e ainda vivos por mera tolerância de quem de direito, pois naquela época as pessoas que não serviam mais para o trabalho eram alijadas e dificilmente alguém desejasse aquela carga. Não vovô, vovó ou papai e outros. Ali ficavam à espera da morte, mas sem a ajuda da fome, a magra vingadora

Quirino foi um desses. Vicente Veado, outro. Este morreu de tuberculose, uma doença de arrepiar os cabelos da nuca só de se falar dela. Morreu isolado num casebre que meu pai mandou fazer lá no buracão, debaixo do bambuzal e ninguém, a não ser o papai, chegava perto nem para levar a sua alimentação. Na volta os vasilhames eram muito bem lavados e escaldados com álcool e fogo e ninguém mais se utilizava deles. Quando a pessoa morria toda aquela tralha era enterrada e nós proibidos na base do medo a passar por lá. Não sei não, mas acho que mesmo hoje eu não passaria mais no buracão sozinho à noite. Estranha essa ingerência do subconsciente. O Eu consciente não acredita em almas do outro mundo, mas o meu inconsciente é muito teimoso e... Ou ele é que está certo?

Não sei de onde o Quirino viera. Não tenho mais nenhuma referência a não ser o que minha cabeça guardou daquele ser, pois todos os demais que com ele conviveram já não mais existem. Era baixo, muito gordo e pouco falava ou andava. Julgava naquela época ser gordo, mas hoje eu acho que estava muito inchado e me recordo bem das suas canelas e pés brilhantes possivelmente de inchaço. A enorme barriga era, sem dúvida, devido à ascite, cujo nome para os roceiros como eu, era barriga-d’água. Provavelmente oriunda de uma cirrose adquirida ao longo do tempo ingerindo bebida alcoólica, má alimentação juntamente com a sua mal-intencionada carga genética. Praga! Pobre somente herda o que é ruim, diziam. Não concordo.

Lá num caixote posto deitado ao lado do estrado de casqueiros estavam os seus remédios, fumo e outras mixarias que se também ali não existissem pouca diferença fariam ao futuro do Quirino. Medicamentos normalmente sobravam. Não queria tomá-los, esquecia-se deles ou inconscientemente os descartava para morrer mais rápido. Ele queria viver o restinho de vida e não durar. Copiei isto de uma entrevista de não sei quem: no fim da vida você tem dois caminhos a seguir: durar ou viver. Quirino, completamente alheio a estas impressões filosóficas, não queria saber. Trocaria e voltava troco de tudo que tinha até então: comida, remédio e mesmo aquele teto simples e deprimente. Moraria ao relento. Não comeria. Apenas água e a cachaça. Muita. Muita! Queria morrer no maior porre. Queria lavar a alma, preste a se elevar para aonde não sei, no álcool. Alguém contra?

Mas ninguém ali o entendia. Dava-lhe aquilo na maior crença de que seria bom, que ele melhoraria e assim por diante. Ele somente queria beber. Que diferença faz a um ex-escravo sem nenhum futuro à vista beber até morrer ou esperar a morte chegar quando ela bem quiser? Seria, em termos, a mesma coisa proibir o meu avô aos noventa e tantos anos parar de fumar porque o cigarro estaria estragando a sua saúde. Fui contrário a ideia. Morreu como todos nós morreremos, mas morreu com dignidade. Não tiramos dele a sua autoridade de homem de fé. Nunca deixamos que ele fosse substituído do seu posto mais alto. Achei e continuo achando que o meu bravo avô não podia ser impedindo de fazer algo porque já não tinha mais cérebro ou forças para reagirem. Subjugá-lo? Nunca! Morreu três dias depois e foram esses três dias os únicos que ele não fumou na vida adulta. Não quero dizer que devemos fumar. Já deixei o vício, mas no futuro alguém vai poder saber se poderá fumar ou beber sem risco ou não. Esperem! Os chutes serão mais certeiros.

Pois o Quirino queria morrer bêbado. E por que não? Ainda hoje num país dito o maior do mundo - não para mim - anestesiam um criminoso (?) e injetam-lhe na veia um veneno mortal? Mas não tem importância nenhuma: é a lei – dos homens, claro. Ou das bestas? Se for lei pode? E como fica a ética?

De qualquer modo o papai minimizava sua privação. Quirino somente gostava de tomar Biotônico. Fiquei sabendo muito tempo depois que um dos constituintes da formulação daquele tonificante era uma espécie de vinho branco. Papai sempre que podia, comprava-lhe um frasco. Tomava-o todo num dia ou em dois. Lembro-me ainda dele: um frasco achatado e rótulo esverdeado. Dentro da caixa vinha um almanaque contando histórias do Jeca Tatu. Tô enganado? Delirando? Se positivo, perdoem-me. Isto ocorreu há mais de sessenta anos. Além do tempo, além de tantos e tantos neurônios desperdiçados, eu era ainda muito menino. Tenho até a impressão da imagem do Quirino prevalecer ainda na minha memória devido ao medo que este ingênuo capiau tinha de um velho que passou pela vida. Como tantos outros ainda passarão.

Quem sabe não? Quem sabe ele viveu exatamente como imaginou ser a vida? Nunca teve o privilégio de experimentar outra. Eu só não arredo o pé de uma verdade: Quirino hoje é como qualquer um de nós será um dia: igual! Hehe!

Dbadini
Enviado por Dbadini em 26/04/2010
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