MOAGEM

Mês de julho. Férias. Todos na fazenda. Logo sentíamos o cheirinho gostoso do melado vindo dos grandes tachos do engenho logo ali do outro lado do Córrego dos Índios. E descíamos correndo a pequena trilha que dava na cabeceira da ponte pênsil feita com cabos de vários arames farpados ajuntados e torcidos. Pequenas tábuas transversais davam apoio a outras maiores e mais largas colocadas perpendicularmente e constituíam a passarela. Do outro lado uma pequena e tosca escada de uns três ou quatro degraus e... Pronto! Estávamos lá.

O engenho era constituído de uma grande e alta varanda de madeira bruta lavrada. A roda da água, toda de ferro e enorme, produzia a força motriz para movimentar o engenho de cana, engenho de serra e o gerador de eletricidade. Bastava trocar uma ou mais correias enormes confeccionadas do couro de boi espichado com bambus, pendurado em alguma árvore e curtido pelo sol. Depois de seco, o couro era cortado com o dobro da largura ideal, levantavam-se as duas margens, virava para cima da outra e costurava-se, usando também tiras do mesmo couro. Depois besuntava com uma mistura de breu e mais alguma coisa que não me lembro para oferecer um bom atrito em contato com as polias de madeira.

Nessa época as canas estavam totalmente maduras, pendoadas. Enormes canaviais existiam lá e chegara a época da moagem. No velho engenho faziam-se rapaduras, açúcar mascavo, puxa-puxa, melado, batidas com cascas de limão, cravo e canela. Bebia-se garapa fresquinha, natural e algumas vezes a garapa azeda, já fermentada, de sabor acre e que nos deixava meio zonzos porque já continha álcool.

A lida era muito grande. Não havia hora para iniciar ou para parar o trabalho. Meu avô começava muito antes do sol nascer. Pegava uma lamparina a querosene, descia o caminho, atravessa e ponte e dava início à moagem da cana depositada lá no estaleiro no dia anterior pelo carro do Joaquim Tropeiro.

Ele soltava uma alavanca de madeira que atuava sobre uma tampa e desviava a água para a roda que se punha a girar e fazia rodar aquela grande quantidade de eixos, polias e engrenagens que gemiam, batiam e faziam estremecer a estrutura tosca. Colocava-se certa quantidade de cana na moenda e o caldo era canalizado para os grandes tachos ou para um tanque de alvenaria. Enchiam os três grandes tachos de cobre, punha-se fogo na fornalha, já agora com ajuda dos outros funcionários. E o processo se iniciava.

Lá pelas tantas, a garapa fervia. Grande espumadeira de cobre montada num comprido cabo de madeira ou bambu era usada para retirar as espumas e “bater” a garapa que depois de certo tempo ia ficando cheia de bolhas mudando para uma cor amarelada. Quando o caldo estava denso, começava-se a “tirar o ponto” de tempo em tempo. Pegava-se uma cuia com água fria e colocava-se dentro um pouco do melado fervente. Balançava para lá e balançava para cá e depois metia a mão dentro e, com a ponta dos dedos, ia-se amassando aquela quantidade de melado para esfriá-lo. Cada vez mais ia se solidificando até que ficava com a forma de uma pequena pelota. Retirava-se daquela água e atirava-se aquela pequena bola contra uma parede ou porta. Se ela batesse com o ruído de algo bem sólido e caísse no chão, estava “no ponto”.

Agora tinham de ser rápidos. Palavras de ordem eram dadas:

- Retira o fogo! Abafa! Não deixa queimar o fundo! Abana compadre, abana! Gritava meu avô, sempre um coordenador afoito, nervoso, estressado e que pegava duro também.

E a fornalha era desprovida do fogo e se colocava lá dentro um grande tufo de bagaço de cana ainda fresco, molhado colhido na boca da moenda com a finalidade de abafar o calor.

E se mexia muito aquela massa, agora ocupando, no máximo, um terço do volume inicial. Com a prática que todos já tinham, sabiam muito bem a hora de colocar aquilo tudo no gamelão. E seguia mexendo com um rodo para esfriar a massa, já bem consistente. Dali ela era colocada nas formas com uma espécie de concha muito grande adaptada a um cabo.

Agora eu podia entrar em cena. Meu avô só permitia que eu ajudasse a partir desse ponto, pois o serviço até então era bastante perigoso devido ao calor. Minha tarefa era ir colocando umas taliscas de madeira para separar a massa em pequenos tijolos, pois assim era confeccionada a rapadura. E eu aproveitava para ir tirando uns pingos de melado daqui e dali e mandando para dentro! Depois de frias, as rapaduras eram empilhadas no armazém e depois vendidas. Quantas e quantas!

Não faz muito tempo, voltei lá. Fui até ao morrinho de onde se avistava o engenho. Não existe mais nada. Tudo derrubado, acabado. Mas eu pude ver claro, nítido, muito vívido o meu avô, Zeca do Nico, Gumercindo, Mário de Demétrio, Joaquim Tropeiro, Mané Gambá... Todos lá! Fantasmas ou zumbis habituais da minha memória de criança.

Dei meia volta. Enxuguei os olhos. Subi o caminho de volta e ainda me pareceu ouvir um canto vindo lá do alto do sanandu, sei lá se alegre ou se triste, da bela e faceira mulata Nenê nos eitos do canavial, cortando, cortando! Cantando e cortando! Foi expulsa de casa dos pais porque ia ser mãe solteira. Morreu no parto.

Oh tempora! Oh mores! Quem foi mesmo o autor das Catilinárias?

- Foi Cícero, ô mané! Gritou lá do fundo o meu inconsciente.

Dbadini
Enviado por Dbadini em 30/04/2010
Código do texto: T2228782