GATA POR LEBRE

Quando se construía o Residencial Assumpção - na época o edifício mais imponente de Bom Despacho -, talvez por entusiasmo excessivo de alguns condôminos espalhou-se pela cidade que o hall teria mármore de Carrara; as escadas, degraus que se iluminavam automaticamente, à passagem das pessoas; elevador externo com vista panorâmica; suítes copiadas da revista Caras; até um observatório astronômico, para bisbilhotar E.T., seria instalado na cobertura. Um luxo!

O fato é que numa daquelas compridas e claras tardes de verão, com determinada amiga a tiracolo minha esposa resolveu conferir ao vivo e em cores tantas maravilhas. Ao chegar elas perceberam que pedreiros e serventes juntavam suas ferramentas, em sinal de fim de jornada. Mesmo assim, curiosas como felizmente todas as mulheres são, decidiram não perder a viagem.

Não é segredo para ninguém que sou radicalmente contra se criar ou manter bichos e plantas dentro de casa. Tudo pode ser bonito, mas integrado à natureza! Por isto nunca tivemos gaiolas com pássaros, aquários, xaxins, porquinhos-da-índia, samambaias... Até o dia que meu filho, contrariando a regra, nos presenteou com uma gata persa. Pêlos compridos em três cores, olhos de jade, andar bamboleante de dançarina do ventre se desfazendo dos véus... A Joana - era este o seu nome - tornou-se a mascote da família. Como felino é bicho andejo, pessoas de longe davam notícias dos passeios noturnos dela, por suas casas e quintais.

Mas voltando às duas turistas no Empire State bom-despachense, depois de percorrerem extasiadas aqueles confortos todos, ao tentar sair para a rua notaram que os operários - esquecidos delas -, indo embora haviam trancado o grande portão da obra. Então, das janelas do segundo pavimento, em desespero, começaram a acenar para os transeuntes na Praça da Matriz, pedindo socorro. Porém, devido à distância, do lado de fora o pessoal entendia que as deslumbradas apenas davam tiauzinhos, seguindo adiante. Até que ao chegar para seu turno de trabalho no Hospital Dr. Miguel Gontijo, ali próximo, o Boizinho enfermeiro ouviu os gritos, já roucos, das prisioneiras.

Brincalhão e amigo como sempre foi, ele me telefonou contando que minha bichana ficara presa na construção, e que eu fosse lá para resgatá-la. Ao correr a vista em volta dei com a Joana cochilando no sofá da sala. Nem pus os pés na rua. Pela hora do Jornal Nacional minha esposa entrou em casa: a roupa suja de massa de cal e cimento, pernas e braços arranhados, uma lástima! Por zombaria perguntei em que estranho ringue havia sido a luta. Ela, cuspindo marimbondo, relatou sua aventura (ou desventura?) no Residencial Assumpção, terminada com a façanha de ter que subir nos ombros da amiga para saltar o tapume de três metros de altura, despencando finalmente sobre uns restos de brita... Furiosa como uma onça, me inquiriu: - O Boizinho, do hospital, não te ligou para ir me soltar, não? Ao que respondi, fingindo-me sério: - É... mas ele falou que era minha gata! - E o que é que eu sou, pra você? Gritou a cara-metade, à beira dum ataque de nervos. - Minha lebre? Brinquei, mal disfarçando o riso. Sem achar graça nenhuma ela entrou para o banheiro batendo a porta com tamanha força, que por pouco não derrubava a casa inteira.

dilermando cardoso
Enviado por dilermando cardoso em 13/05/2010
Reeditado em 12/03/2011
Código do texto: T2255233