SERESTEIROS DA MADRUGADA

Qualquer noite destas, por culpa de uns tira-gostos meio salgados da véspera, lá pelas tantas da madrugada acordei com sede, e antes de chegar à geladeira, ainda na copa, dei com meu filho caçula ao computador. Como todo pai careta que se preza, bronqueei: - O que você está fazendo neste trem, até agora? A cândida resposta dele foi que estava mandando músicas para uma amiga. – Peraí – emendei ressaqueado -, é assim que se faz serenata, hoje em dia? Não tem a menor graça!

Ao voltar para a cama não consegui tirar da memória as lembranças prazerosas, de como nos meus tempos de rapazinho as coisas eram tão diferentes, e, se me permitem, com mais glamour do que agora, apesar de toda tecnologia. É claro que a cidade e as pessoas eram outras – afinal, tudo muda! Os laços de amizade talvez fossem mais sinceros. Havia gosto pela vida. Ou mais tempo para vivê-la plenamente. Como esquecer, por exemplo, minha turma de serestas? Dirinho Cardoso, Tõe Tati, Mário Teodoro, e outros animados moços, devidamente divididos entre instrumentistas, cantores e vigias... Explico: é que na ocasião vigorava aqui em Bom Despacho uma destas leis bestas, inventada, quem sabe, por um delegado bundão, que proibia atividades musicais públicas depois das dez horas da noite. Coisa de cabeça coroada por um par de chifres! Por isto, nas serenatas não podiam faltar os vigias, para avisar quando a polícia vinha chegando e assim dar tempo aos cantores e tocadores de se mandarem, porque o castigo era ter os instrumentos apreendidos. Como desafino até calado, me escalavam para este posto.

Sendo seresta coisa séria, nosso local de concentração, ou aquecimento, era o Bar do China. É impossível cantar sem que antes não se dê um bom trato à garganta, de preferência afinando as cordas vocais com o gargarejo de cervejas geladas, uns cuba-libres... O China, também conhecido por Zé Maria, como todo varão da família Paiva tinha uma bela voz de tenor e vez por outra se juntava ao nosso grupo de seresteiros. O perigo era quando ele cismava em imitar o Miguel Aceves Mejia, um cantor mexicano, breguíssimo, que fazia sucesso nos toca-discos de certas casas pra lá de suspeitas, na Rua da Garça – caso alguém não se lembre mais a antiga zona boêmia da cidade.

As eleitas ou, melhor dizendo, as vítimas de nossas apresentações musicais noturnas eram as namoradas eventuais, colegas de ginásio, e as bonitas e gentis vendedoras das lojas chiques de então: Casa Freitas e Casa Víctor... Afinal, a estória pode ser antiga, mas ninguém ali era bobo ou boiola, não! Até que em certa madrugada fomos cantar sob a janela de uma fulana de tal Azevedo, pessoal com fama de ter o estopim curto. Ao embalo das biritas nem atinamos que, fora do normal, as lâmpadas da casa ainda estavam acesas. Na metade da primeira música, abrindo a porta alguém gritou de lá: “Isto aqui, hoje, é um velório!” Sem calar os instrumentos ou desafinar uma nota o Dirinho e o Tati, que cantavam em dupla, entreolhando-se emendaram contritos um sucesso muito ouvido nas missas de corpo-presente: “Com minha Mãe estarei, na santa glória um dia, no céu, no céu...” Já não se fazem mais seresteiros como antigamente!

dilermando cardoso
Enviado por dilermando cardoso em 14/05/2010
Reeditado em 19/12/2010
Código do texto: T2257205