Primeira comunhão

Confesso que tive e tenho muitos e muitos problemas de entendimento sobre as coisas da vida, mas nada mais difícil que fazer aulas de catequese ainda nos anos 60, época de Igreja tradicional, conservadora, sem espaço para o acolhimento tão necessário para nos sentirmos mais humanos.

Quando garota comecei a freqüentar as aulas de catequese no colégio, uma unidade do SESI, no Cambuci. Eu não entendia nada em nenhuma das aulas. Ouvir sobre Adão, Eva, Caim, Abel, pecado mortal, venial, Maria foi concebida sem pecado (eu não sabia nem o que era concebida) eram coisas do outro mundo. O pior era a professora, sempre mal-humorada, bravíssima, amarga, jamais esboçara algum sorriso e adorava falar em castigo eterno. Pequena, com pouca visão e muito medrosa, ouvir falar em julgamento, juízo final, inferno, era literalmente um inferno! E não tinha escapatória: eu era sempre a primeira a ser chamada para a tradicional chamada oral e errava todas. Não tinha idéia do significado da Santíssima Trindade e a professora adorava perguntar sobre isso. Eu dizia logo que não sabia a resposta e nem ficava envergonhada. Não teve jeito: fui reprovada e nem me senti culpada por isso, afinal aquilo tudo para mim não tinha o menor significado. E pelo olhar da catequista eu era um caso perdido, desses que nem valeria a pena investir.

Aí a minha mãe me colocou na catequese da igreja do bairro. A coisa piorou e muito, até porque continuei na reprovação implacável e nem sei quantas vezes tive que refazer as aulas. Cheguei a mudar de turma, mas continuava sem entender. Ali tive que enfrentar o tradicionalíssimo padre Antônio. Era mais bravo ainda, mais sisudo, cabelinho bem curto, com um olhar de censura para todas as coisas, achava toda e qualquer modificação no comportamento social uma verdadeira infâmia, mas não achava nada de escandaloso e boçal na ditadura . Vamos em frente.

E eu ficava imaginando: como eu seria aprovada se a cada dia eu entendia menos. Eu achava tudo aquilo extremamente sério , grave demais e eu não conseguia ver tanta gravidade nas coisas. Para mim a vida poderia ser mais simples, bastava que as pessoas conversassem, se entendessem, tentassem ser boas e solidárias umas com as outras e pronto – o mundo seria melhor Não haveria tanto pecado para se expiar, tanta culpa para ser guardada naquele lugar do peito para se bater: minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa. Mas máxima por quê?

Num dia das férias de julho, dia nubladíssimo e frio estava em casa a família do tio Carlos. Brincando com os meus primos eu cheguei a ter a vã esperança de matar aquela aula. Quem sabe, no movimento, na distração das conversas, a mãe se esqueceria, deixaria a hora passar, qualquer coisa. Eu sonhava que alguma coisa pudesse acontecer, mas não teve jeito: a mãe mandou todo mundo pra aula da catequese: eu, meu irmão, a prima Maria Ângela e o primo Marcos. Então lá veio o padre Antônio e se pôs a falar no inferno de novo. Para completar, acabou a luz e trovejou. Aí eu tive certeza de que era mesmo possível chegar o final dos tempos, haveria mesmo choro e ranger de dentes e ficaríamos todos expiando num caldeirão fervente a eternidade inteira se necessário fosse. Foi um dos dias mais doídos da minha infância.

Véspera da primeira comunhão: o padre Antônio resolveu fazer um ensaio geral. Levou um saquinho de hóstias sem benzer e deu uma para cada criança, dizendo que caso a mesma encostasse no dente ou entalasse no céu da boca iríamos para o inferno. Chegou o domingo e lá fui eu vestida de branco, com uma vela na mão, com a maior cara de boba desse mundo... e a hóstia encostou no dente. Confesso que passei algumas noites dormindo muito enrolada na coberta, com medo até da sombra, me segurando, me protegendo nem sei do quê.

Somente algumas décadas depois consegui fazer as pazes com a Igreja, depois de muito esforço e compreendi: no tratamento de pacientes com depressão o local onde a dor é muito intensa é num ponto chamado VC 17 – Vaso da Concepção 17. É exatamente o lugar onde historicamente se bateu com a mão direita fechada, assumindo-se “minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa”.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 19/05/2010
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