Na rua Caiuby

A rua Caiuby, no bairro das Perdizes, é belíssima. Pelo menos è assim que a guardo nas minhas retinas já um tanto fatigadas.

Eu me lembro, ainda nos anos 80, quando eu trabalhava como revisora de textos numa editora de psicoterapia ali próximo. Todos os dias, na hora do almoço, eu ia fazer o quilo e começava a caminhada pela Caiuby e olhava para a calma que a rua aparentava, as folhas das árvores farfalhando como se ali habitasse o lado mais retraído e acolhedor da cidade. Caiuby, do tupi, folhas azuis.

Ali ficava o convento dos dominicanos e cheguei até a frequentar um pouco esse convento quando ia buscar algum livro emprestado de História Ibérica com o meu professor universitário, o Frei Oscar Lustosa. Ele me recebia bem, mas era de pouca conversa. Eu nunca consegui passar da portaria e eu haveria de compreender isso. Agora naquele local existe um colégio e o convento se mudou para a rua de trás, num espaço menor, até porque hoje o número de religiosos é bem mais reduzido.

Os dominicanos representaram um dos segmentos que mais lutaram contra a ditadura, apoiando movimentos sociais, comunidades de base e escondendo perseguidos políticos. Dali foi preso o frei Tito de Alencar Lima e de tão barbarizado, veio a se suicidar aos 28 anos de idade depois de tantas alucinações após as intermináveis sessões de tortura nas mãos do famigerado carrasco Sérgio Fleury. E deixou um bilhete: “é melhor morrer a perder a vida”. Foi bem ali, com muita sutileza, que o notável escritor humanista Frei Betto conseguiu escapar dos pobres idiotizados a mando do poder. Deixou propositalmente um aviso com informações erradas na pequena lousa, na entrada, dizendo: volto às 7. Obviamente não voltou e conseguiu escapar, nas barbas dos meganhas.

Daquela janela, lá de dentro, enquanto o Frei Lustosa ia buscar os livros para me emprestar, eu, com amor e, ao mesmo tempo, com amargas lembranças, olhava a rua, a calma Caiuby, ao mesmo tempo em que eu enxergava o mar de atrocidades batendo à porta tempos atrás. Era inacreditável imaginar o gosto do sangue e do pavor escorrendo por aquelas escadas, inapelavelmente. Essa era a resposta para os que buscavam justiça, dignidade e direitos iguais. Os dominicanos trabalharam muito nessa questão, apoiando os que não tinham voz mas sonhavam e lutavam pelo direito à vida.

O que eu desejo? Que aquele colégio que existe no lugar do antigo convento dos dominicanos conte a história na sua forma mais verdadeira, explique o significado das palavras, das atitudes dos antigos donos do poder e a voz da sociedade reagindo ao arbítrio. Hoje os jovens me perguntam sobre a ditadura e tenho um enorme prazer em avaliar que se eles não sabem o seu significado é exatamente porque lutamos contra ela e lutamos muito. A minha geração lutou aberta e aguerridamente e guardo muito orgulho por isso. Desejo que aqueles jovens aprendam na escola, sobretudo naquela escola, a força negativa, covarde e escura do autoritarismo, mas que aprendam sobremaneira o significado de solidariedade, respeito, amor ao próximo, respeito às diferenças , lutas democráticas e respeito à memória. À memória dos que perderam, que foram torturados, exilados ou mortos, que deixaram seus sonhos perdidos nos gritos alucinantes de dor. Respeito às famílias dos que se foram. O meu grande desejo é que esses jovens entendam que democracia e liberdade se constrói, bem como dignidade e afeto pelas coisas da vida. Que esses jovens, especialmente daquele colégio, não se percam nas ruas movimentadas dos shoppings, acreditando e vivendo exclusivamente na sociedade do espetáculo, mas que se percebam privilegiados e agradecidos pela existência de pessoas anônimas que um dia deixaram seu sangue em busca de um sonho: o desejo apaixonado pela liberdade e o direito a escrever e construir uma outra história.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 19/05/2010
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