Quando a minha avó fez 80 anos

A minha avó veio morar conosco em São Paulo quando eu era pequena. Poucas pessoas na minha vida ocuparam o lugar na minha formação como ela. Tinha lá os seus defeitos, mas a vó era a vó. Desde cedo era perceptível a sua visão social. Filha de imigrantes italianos, conheceu de perto, bem de perto, a pobreza e se envolveu no trabalho duro. Ela chegou um dia a me dizer que, quando pequena, a pobreza era tanta que não havia onde se sentar. Isso desde os seus primeiros tempos, no interior das Minas Gerais. Por isso, sempre respeitou os mais pobres e sabia que o correto era lutar por eles e com eles.

Eu nunca vi a vó falando alto, blasfemando ou mostrando tristeza ou frustração, mas certamente tinha muitas dessas coisas guardadas. Ela sabia administrar sofrimentos e perdas. A vó sempre tinha alguma coisa boa a nos ensinar - aos meus irmãos e a mim. No apartamento da rua Dom Duarte Leopoldo, no Cambuci, deixava que brincássemos durante o dia, mas quando faltava 15 minutos para a minha mãe chegar do colégio onde dava aulas, dizia: "daqui a pouco a tua mãe vai chegar. Faltam 15 minutos". Entendíamos rapidamente o recado: era a conta para a gente guardar os poucos brinquedos e a casa ficava em ordem. Eu sabia o que isso queria dizer: a mãe precisava de respeito, afinal.

Em Minas a vó trabalhava duro. Ainda estava longe de eu nascer, mas o meu avô tinha uma vendinha e ela fazia de tudo ali, inclusive quitanda. Quem é de Minas ou tem um pé lá - como eu - sabe o que é quitanda. São aquelas delícias de Minas: roscas, pão de queijo, biscoitos, pães... enfim. É praticamente tudo o que se come naquelas terras fora o almoço e a janta. Forno a lenha. Água do riozinho, o popular corguinho e as dificuldades típicas do início do século XX.

A família foi para São Paulo com o final da II Guerra e esse assunto sempre foi presente nas suas conversas. Lá se foram morar na Cantareira e sobre o mercadão eu já ouvia de falar muito antes de saber da sua importância e da sua imponência. E mais e mais trabalho.

Ela também sempre contava sobre a pensão que passou a ter na rua Abílio Soares, a casa era grande e lá também fazia de tudo. De vez em quando, passeava com o meu avô na Sears, andava de bonde.

Conheceu bem São Paulo, a Casa Verde, inclusive. A vó gostava de ler. Contava que, em Minas, às vezes chegava apenas um pedaço de jornal embrulhando alguma mercadoria que o meu avô ia buscar em Poços de Caldas. Ela então lia as notícias diversas vezes, na vontade de ler mais outras partes do jornal. E lia o que tivesse a mão. No nosso sobrado, na rua Albuquerque Maranhão, sentadinha no seu puf verde, próximo à janela da sala, ao lado da então vitrola, ela lia a Folha de São Paulo e o que mais tivesse. A minha mãe comprava os livros do "círculo do livro" e eu me lembro de ela ler "A Religiosa", do Diderot, um clássico do Iluminismo do século XVIII. Na Folha, não perdia a coluna do Lourenço Diaféria. Sempre crítica da ditadura, ninguém a enganava. Achava que o povo deveria xingar aqueles militares de "desgraçados". Para ela, "desgraçado" era o pior de todos os palavrões, a coisa mais abrangentemente negativa que se poderia dizer para aqueles meganhas sórdidos que um dia resolveram mandar no país.

Gostava de televisão, da Hebe Camargo, do Agnaldo Rayol. Jamais me esqueci de um comentário seu sobre a Beth Faria. Num programa de televisão, lá estava a atriz dançando e cantando, tomando conta e muito bem do palco. Eu não sei porque a vó não gostou e apenas exclamou: "ela pensa que é a Bibi". Até hoje quando ouço a majestosa Bibi Ferreira cantando ou leio alguma coisa sobre ela, me lembro da vó... e da Beth Faria.

Eu gostava de comprar doces para ela. Bastava viajar, tratava eu de procurar alguma coisa gostosa, diferente para levar para ela. A minha sogra (na época, quase sogra) se acostumou com a idéia. A qualquer festa de família, ela mesma tratava de fazer um prato de doces, vinha me entregar e dizia: "isso é para a sua avó".

Então a vó fez 80 anos. A minha irmã e eu resolvemos fazer uma festinha surpresa para ela. Detalhe: foi surpresa mesmo, porque ela não deixaria que isso acontecesse. Escondida, a minha irmã fez brigadeiro e alguns salgados enquanto eu trabalhava. O meu tio Carlos - filho dela - estava na nossa casa e foi cúmplice de tudo. Antes eu havia encomendado um bolo, recheado de doce de leite, na confeitaria Santa Clara, na Lins de Vasconcelos, que existe ainda hoje. Pedi uma plaquinha de chocolate sobre o bolo com os dizeres: "viva a vó". Mas foi tudo tão bom, tão planejado, conversado e tudo tão bem escondido... À noite, arrumamos a mesa, com direito a Coca Cola e a conduzimos para a copa. Ela timidamente se emocionou e ficamos por ali, contentes e sorridentes, comendo juntos.

Passou o tempo, ela fez 90 anos, mas eu não pude viajar para cumprimentá-la. Com quase 96 ela se foi. Foi embora junto com um terço que eu havia pedido para o padre diretor do Colégio jesuíta que eu trabalhava - e ainda trabalho - um terço de Lurdes, com uma gota de água benta naquele espaço que une as duas partes do mesmo. Pedi esse terço especialmente para ela, quando fez 95 anos. Enviei o mesmo para a minha avó pelo correio, junto de uma caixa de chocolates que eu havia feito.

No dia que seria o seu centenário, rezamos uma missa e fizemos a comida que ela mais gostava: macarrão gravatinha com frango. Fizemos uma homenagem, filmamos algumas falas. relembramos momentos felizes e sabemos que os anjos e santos adoraram a chegada lá em cima da dona Noêmia Sartini, que tinha palavras precisas, agradáveis, calorosas e muito engraçadas. Recebi dela uma herança bendita: o respeito ao próximo, a valorização do conhecimento e da memória e o espírito de luta, com esperança, religiosidade e bom humor.

Mas, afinal, será que a Beth Faria ainda pensa que é a Bibi?

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 19/05/2010
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