Puff verde

Eu não me lembro como aquele puff apareceu, quando foi comprado, nada, mas sei que o puff verde da minha avó era único. Verde escuro, circundado por botões encapados com a mesma napa e com 4 pés pretos de madeira.

Ao lado da vitrola, que ficava sob a janela da sala, estava o puff verde da minha avó.

Eu me lembro que já era uma previsão de saudade, a bondosa e sábia saudade, vê-la sentadinha ali, fazendo o seu crochê impecável com a agulha de corpo azul marinho. A vidraça permitia uma tênue entrada de ar, pois a minha avó colocava no peitoril uma lata de talco como suporte para que a janela permanecesse parcialmente aberta.

O que será que a minha avó pensava enquanto fazia crochê no seu puff verde? Devia pensar nos meninos... os filhos dela, todos adultos e casados, de bigode desde a juventude e que já viviam no Paraná. Com certeza omitia preocupações sobre a saúde do meu pai e o futuro dos filhos dele. Dali eu escutei muitos comentários sobre coisas de família, sobre os desmandos da ditadura. Quando os preços aumentavam, por exemplo, ela falava da “pouca vergonha desses safados”. “O povo não vale nada. O povo tinha que sair, pegar um pedaço de pau, bater, chamar esses políticos de desgraçados”. E não havia para a vó pior palavrão que “desgraçado”.

E fez agasalhos de crochê para nós. Muitos. Fez uma manta amarela para o filho que um dia eu iria ter. Fez um tapete de sisal vermelho para a minha mãe e ficou com os dedos em feridas por um bom tempo. Para esse tapete, o meu tio Mazico, lá das Minas Gerais, fez uma agulha especial, grande e de madeira para que ela pudesse trabalhar em paz.

Às 3 da tarde ela ligava o rádio para ouvir o programa da Hebe Camargo. Ouvia as músicas, as fofocas das gentes da tevê, mas, ali quietinha no puff, ela lia a Folha de São Paulo. Eu achava engraçado porque mineiro lê a Folha de um jeito estranho. Eles fazem várias dobraduras de comprido e vão lendo por colunas. Ela adorava ler e comentar os textos assinados pelo Lourenço Diaféria, aliás, colunista extraordinário e crítico também dos milicos. Ali naquele puff ela também leu até o iluminista Denis Diderot. E ela ia lendo, ouvindo as suas músicas, fazendo o seu crochê, tendo algumas conversas interessantes quando os parentes vinham visitar. E observava muito.

A partir do puff verde a vó saía para fazer o seu café. Mas num final de tarde ela saiu dali em silêncio, subiu as escadas daquele sobrado na mais profunda solidão. Eu fui atrás dela e ela estava chorando. Chorando porque a sua irmã, tia Julieta, havia falecido, com idade avançada, lá nas Alterosas. E ela chorava com muita dor. Eu fiquei encostada no seu ombro esquerdo enquanto ela chorava. Naquele lugar muitas vezes a vi rezando pela saúde da tia Julieta, com uma vela acesa. Acho que rezando para Nossa Senhora.

Daquele puff verde a vó enxergou muito, embora suas retinas já estivessem um tanto fatigadas. Consolou a neta pequena quando a mesma não queria ir à escola, quando tinha medo da catequista e se escondeu. Dali ficou brava no dia que o meu irmão não quis me ensinar Química. Ela se levantou, pegou um travesseiro de espuma e bateu nele com esse instrumento . Deve ter provocado uma dor lancinante naqueles glúteos... Dali se levantou para fazer doce de leite para nós, para passar o gnocchi no garfo antes de o mesmo ir para a panela. Era para ficar mais bonitinho. No caso do doce de leite, existe uma fase anterior ao ponto certo. É a puxa. A vó colocava um tanto da colher de pau num prato com água. Esfriava e ela pegava aquele bocado e punha na nossa boca. Comíamos tanta puxa que ficava pouco para o doce propriamente. Ela dizia: “esse doce não vai dar nada hoje... mas não faz mal, é pra eles mesmo”... e ficava tudo assim. Um dia ela se levantou do puff verde para fazer pão e bolachinha. Ah! O paraíso está cheio de bolachinha torcida da vó. Faz 13 anos que ela partiu e os anjos e santos estão se arregalando de comer as bolachinhas salgadas da vó com café Moka bem quente. Acho que ela deve estar também fazendo agasalhos de crochê para os santos todos. Eles devem estar bem agasalhadinhos no inverno do céu.

Há anos eu via um puff verde na casa da minha sogra. Um dia ela me disse: “Se quiser, pode pegar. Eu ganhei da Nilza, mas ninguém quer”. Imediatamente o meu filho abriu o porta mala e ajeitou o sentante para a viagem de 700 km... mas não era bem igual ao da minha vó.

Chegando em casa, levei o puff para uma estofaria e pedi: “um verde escuro daquela tonalidade ali, ó”. “Quanto é?” “ah! Sim, sim, pode fazer. Não tem pressa”... mas tem que ficar igual ao puff da minha vó.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 20/05/2010
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