E eis que chega o Francisco

Um dia o telefonema: algumas primas do meu pai haveriam de nos visitar. Eram três senhorinhas simpáticas, distintas, bem bonitinhas. Somente uma ainda tinha marido vivo. As outras já haviam enterrado os respectivos e não estavam nem um pouco tristes por isso. Perfumadas, sorridentes, chegaram para uma visita de sábado à tarde.

Minha irmã caçula e eu estávamos curiosas. Eu sempre gostei de velhinhas, da sua pureza e sabedoria, da falta de malícias, do carinho que elas demonstram pelos outros. Era comum minha irmã e eu nos sentarmos no mesmo módulo e eu passava o braço pelo seu pescoço e ficávamos ali ouvindo as conversas e observando tudo para posteriores comentários alegres. Éramos muito jovens ainda e então achávamos graça de muita coisa que, na realidade, não tinha graça alguma.

E ouvíamos as conversas embaladas por sorrisos e considerações. Mas como a família do meu pai era muito afeita aos assuntos ligados a doenças, hospitais, Beneficência Portuguesa e internações, resolveram dialogar sobre a vida além-túmulo. Confortável, na cadeira de balanço, meu pai confabulava e contava sobre o depoimento de um sujeito que havia sobrevivido ao estado de coma. Segundo o meu pai, o sobrevivente falava de um mundo encantador, cheio de luzes e flores, jardins requintados e etc e tal. As velhinhas suspiravam... a minha irmã e eu nos pusemos a rir bem baixinho, encolhidas na nossa poltrona e esperando outras atrações.

Logo uma delas – a que não havia ainda enterrado o marido – se pôs a olhar para a minha irmã e a demonstrar um grande interesse para que a mesma se tornasse sua nora. Foi uma surpresa tão absurda! A minha irmã tinha uns 13, 14 anos, cheia de promessas de vida, onde iria amarrar a égua desse jeito? E a senhorinha falava: “O meu filho é o Francisco...” Mas dava tal entonação que a gente ouvia um Francisssssssssco compriiiiiiiiido. E sorria para a minha irmã com muita frequência.

E ela não escondeu mesmo o seu objetivo. Resolveu contar, timidamente, que não queria que o tal do Francisco continuasse namorando uma determinada moça porque, afinal... bem... como dizer... o assunto é por demais constrangedor... a moça era filha de uma ... ora, como direi... senhores... a moça era filha de uma DESQUITADA. Pronto! Falei! Ufa... Saiu...

E isso era um grande problema para aquela gente, inclusive para o meu pai que sempre achava que, se as coisas iam mal, era por culpa da mulher. Ele adorava falar que o seu avô português dizia que “o homem não pode mostrar os dentes para as mulheres”. Um dia, indignada, me fiz de boba e perguntei: “mas, pai, e se a mulher for dentista?” A resposta que obtive foi um olhar que me perfurou a alma dezenas de vezes, o poder de uma bomba de Hiroshima e nunca mais se falou disso. Voltemos à mãe do Francisco.

A visita estava ótima até que a minha mãe resolveu servir uma cassata. Naquele tempo era muito chique servir cassata aos visitantes. Tempos depois o chique passou a ser aquela gelatina colorida, com leite condensado e creme de leite, bem engordiet mesmo. Mas a tal da cassata estava muito gelada e a minha mãe serviu em pratinhos de sobremesa. Estava difícil de cortar e a minha irmã e eu começamos – mais uma vez– a rir porque uma das velhinhas não dava conta do intento e achávamos que o seu pedaço de doce iria sair escorregando, correndo pela sala, ultrapassando obstáculos, passeando apressadamente pela mesa de vidro, dando de encontro com a estante. O impacto seria tão grande que o mesmo pedaço voltaria incólume para o seu próprio prato. Mas nada disso aconteceu para nossa tristeza e desapontamento.

Conversa vai, conversa vem e a mãe do Francisco não dava trégua, dizia da inteligência do filho e tal e coisa, da faculdade que fazia, que era bom aluno, educado, respeitador ... e a gente ria e se cutucava.

Toca a campainha. E eis que chega o Francisco. Ele foi de carro buscar as tias . Timidamente entrou, cumprimentou a todos, se sentou caladíssimo e nós duas ficamos pasmas. Nunca se viu um rapaz mais feio, sem-graça, de cabelo amarelo. Tadinho, ele parecia uma omelete ou quiçá uma espiga de milho. Branco, sem vida. Cadê a pinta de galã que a sua mãe tanto alardeava? Cadê todo aquele charme irresistível?

Com todo respeito, Francisco, Você poderia ser ótima pessoa, mas pegou mal aquela propaganda toda. Parecia uma verdadeira operação desencalhe. Nunca mais nos vimos e espero que você esteja muito bem. Se era bom aluno, que tenha tido muito sucesso na vida, com dignidade e ética. Se era apaixonado, que tenha se casado e sido muito feliz. Se tem filhos, que sejam educados como você se mostrou. E tomara que a sua mãe tenha compreendido que “ser filha de uma mulher desquitada”... ora, tenha a santa paciência...

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 20/05/2010
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