Na catedral, de calças compridas

Quando menina muitas vezes eu ia ao centro de São Paulo com a minha mãe. Quando ela dizia para irmos “à cidade” eu achava ótimo. De ônibus, descíamos na praça João Mendes e íamos fazer o que de necessário. Na praça da Sé era obrigatória a passada na Romagnola, que hoje se chama La Romagna. E tinha cada sonho recheado, cada rosca coberta com açúcar que era um deslumbre! A Romagnola era um pedaço do paraíso perdido no meio dos prédios históricos, da correria diária de milhares de outros paulistanos.

Era comum alguma compra nas Lojas Americanas. Existiam também as Lojas Brasileiras, mas, pelo visto, era mais chique entrar nas Americanas. Sempre abarrotada de compradores, tinha um cheiro especial, porque, na entrada, uma parte da loja era destinada à venda de cachorros-quentes. O molho deveria ter algum condimento especial porque o cheiro era diferente de tudo o que eu conhecia.

Num Natal a minha tia me deu um dinheiro para que eu mesma comprasse o meu presente. Fui às Americanas e comprei uma gaiola e dois periquitos coloridos que cantavam e cantavam. Dei a eles o nome de Moshe Dayan e de Golda Meir, grandes representantes da causa judaica, em evidência na época. Golda era Primeira Ministra de Israel e Moshe estava sempre na mídia como liderança israelense contrária ao mundo árabe. Mal cheguei em casa e tive pena de ambos. Abri a porta da gaiola no nosso pequeno quintal e deixei que voassem em liberdade.

Pelo meu olhar infantil, as passagens pelo centro de São Paulo eram sempre vibrantes e com ótimas novidades. Eu abria bem os olhos para ver sempre mais.

Num desses dias o tempo resolveu correr mais depressa. Ia anoitecendo e a chuva se preparando para cair. Começamos a andar com mais rapidez e passou uma moça conhecida da minha mãe. O cumprimento foi rápido. Eu não sabia quem era aquela mulher, mas a minha mãe me confidenciou, inclinando o corpo para perto de mim, como a dizer alguma coisa séria, gravíssima, de grandes proporções, que ninguém poderia ouvir dadas as dimensões descabidas do que tinha a declarar. Murmurou: “Essa moça é mãe solteira”! Essa expressão veio imediatamente acompanhada de um estrondoso trovão. Concluí que nada no mundo poderia ser mais grave e absurdo do que ser “mãe solteira”. Durante muitos anos tive um terrível medo dela. Achei que elas deviam ser de alta periculosidade.

Entramos na catedral. Quer dizer, a minha mãe pensava que entraríamos na catedral, mas fomos barradas. Eu, com onze anos de idade, estava de calças compridas. Um guardinha veio ao nosso encontro e, com cara de poucos amigos, nos proibiu a entrada. Minha mãe argumentou: “mas ela é uma criança”! Não podia e estava acabado.

Durante a minha juventude tive uma dificuldade imensa em entender o que se dizia na Igreja. Eu ficava sempre com uma cara de “uééééé????” com essas coisas, bem como , num sermão na igreja do Cambuci o padre falava horrores sobre a publicação da primeira revista masculina no país. Eu pensava “uai, não é mais pecaminosa e estarrecedora a prática da tortura que está vigorando no país em plena ditadura?” Disso o padre não falava...

Eu só sei que entendi que mãe solteira era algo perigoso e que entrar de calças compridas na catedral seria uma infâmia. Eta vida besta, meu Deus...

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 21/05/2010
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