Doce de abóbora de coração

E então eu resolvi ter um filho. Desde sempre eu sabia que seria o Vinícius. Anos antes eu já havia comprado uma escovinha de cabelo azul na antiga Sears do Paraíso. Eu sabia que todas as aquisições seriam realizadas lentamente, com carinho, capricho e profunda alegria, contando, obviamente, com o pouco dinheiro de todos os dias. Eu me sentia na mais absoluta e sincera paz com essa feliz possibilidade. Um filho! E mais: com nome de poeta. Eu sempre quis um filho com nome de poeta, principalmente daquele que viveu com intensidade a poesia, a sensibilidade e o encanto do amor. E o mundo – meu mundo – estaria se preparando, se desenhando e se colorindo. Viria um filho, mas não para ser o dono da casa, o dono de todas as vontades. Um filho para ser amado e ser educado, aprendendo que o mundo seria de todos e para todos. Não exclusivamente seu, aquele mundo estranho de filho único.

E o máximo de toda a minha vida era o envolvimento e o compromisso com produção cultural, a arte do educar, a arte de buscar, de ir ao encontro de múltiplas formas de conhecimento. E eu ia andando, olhando e me tentando me entender com o mundo multifacetado em que tudo e nada eram permitidos ao mesmo tempo. Tempos de uma São Paulo já completamente abarrotada de possibilidades, sonhos e entraves. E eu vivia intensamente o caos, as enormes distâncias, os dramas do cotidiano e das diversas manifestações de solidão e o alívio de estar sempre envolvida em alguma forma de produção do conhecimento. Era o mundo num movimento frenético e eu me questionava se era possível me afastar, pelo menos um pouco, desse viver intenso e... ter um filho.

A barriga lentamente começou a crescer e, com ela, a vontade de doce de abóbora de coração. Vivendo em Florianópolis dos anos 80, algumas coisas das minhas saudades não existiam ... e o doce e abóbora de coração era quase desconhecido.. E eu pensava naquele doce, naquele formato, naquele cheiro que tantas vezes me acompanhou na meninice e nos meus sonhos. Cheguei a ter a coragem, mesmo na minha cruel timidez, de comentar com uma colega sobre a questão. Essa colega era muito gentil, mãe de cinco filhos, entendida bem a minha situação e a minha solidão, afinal, era apenas o meu marido e eu a vivermos na ilha de Santa Catarina, sem nenhum parente à vista, nenhum recurso afetivo nas horas de indecisão e questionamento. Ela bem que procurou o doce para mim no bairro onde morava, mas... neca. Eu sentia nas profundezas da alma que o doce seria o mecanismo de fazer as pazes com o passado, com a infância de poucas amigas num apartamento de fundo, escuro e, mais tarde, num sobrado. Infância de muitas dúvidas e medos, mas com a boca desejosa de doces, cremes, sorvetes e alegria. Era o doce de abóbora de coração que me convidava a rever o passado, a ter a coragem de inventar algumas brincadeiras, abraços risonhos e amizade eterna, cúmplice e fecunda na mais estreita confiança e certeza da vitória da vida sobre os medos e a solidão.

E então nasceu o Vinícius, que eu não sabia pegar no colo, amamentar, conversar e contar coisas. Eu não sabia nada. Mas o desejo e a saudade dos tempos do doce de abóbora de coração me fizeram ser forte o bastante para ousar um amor inventado. Amor construído lentamente, fazendo dialogar o presente e o passado, o amor inventado cuidadosamente na difícil e interessantíssima arte de viver.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 25/05/2010
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