Amizades e Risos

Então meu marido e eu resolvemos sair de São Paulo. Jovens ainda, resolvemos fugir das filas de ônibus, do barulho das avenidas, do medo do ladrão e da feia fumaça que subia e apagava as estrelas.

O meu marido foi chamado para administrar um hospital em Registro, no Vale do Ribeira. Eu, como professora, arrumaria facilmente um emprego. Ali tive os mais brilhantes alunos de toda a minha vida profissional, mais comprometidos e prontos para os mais variados desafios. Não sabiam o que era a preguiça e muito menos o amargo vício da reclamação.

Sempre cheia de entusiasmo pelo trabalho e por novas descobertas, nos pusemos a caminho. O meu marido viajou poucos meses antes de mim, pois eu queria terminar as aulas no pré-vestibular.

Fomos ao encontro. Paulistana típica, saí do coração do bairro nobre da Aclimação para uma cidade pobre, cheia de problemas e preconceitos. Eu me senti perdida, confusa, mas pronta para as descobertas e outras façanhas. Fomos bem acolhidos e fomos procurar arrumar casa. Que casa? Em meados dos anos 80 era praticamente impossível se arrumar alguma casa por ali. Quisemos comprar uma muito bonita, nova, mas o japonês desistiu da venda. A colônia japonesa de Registro era interessante em todos os aspectos, inclusive na desconfiança que os moradores dali tinham em relação aos novos agregados. Perfeitamente compreensível. As colônias têm essa característica: a tentativa de preservação da cultura, dos hábitos, valores e da língua.

Mas aqueles japoneses eram crédulos! Pessoas excelentes no trato, no trabalho, na confiança. Ótimos companheiros de existência... mas crédulos. E tem coisa mais gostosa que falar bobagens com cara séria e fazê-los acreditar? E deixar o tempo passar e os mesmo acreditando na veracidade daquela bobagem? Impossível registrar a delícia da brincadeira, da falta de malícia, apenas fazendo valer o direito de uma boa gargalhada... mas às escondidas.

Eu tinha uma colega, uma simpatia, chamada Kayo. Ela ficou no meu coração pela bondade, atenção pelas pessoas, e, quando eu saí da cidade com um novo destino, ela teve dificuldade em se despedir de mim: os seus olhos estavam verdadeiramente marejados.

Em meio a minhas brincadeiras imbecis, um dia eu disse a ela que meu marido e eu vivíamos pelados em casa. Ela fez um estranho “é?” Séria, eu confirmei e disse que todas as visitas faziam o mesmo ao chegarem ao aconchego do nosso lar. Ela evitou demonstrar indignação, mas ficou numa perplexidade imensa, com os olhinhos até um pouco mais abertos. Ela passou a me olhar esquisiiiiito daí pra frente e eu fingia não saber a razão disso.

Eu comentava por carta, com uma amiga de São Paulo, as minhas atrocidades na pacata Registro e essa amiga, a Neusa, só dizia: “cuidado, você vai matar as japonesas”...

Um dia eu resolvi dizer que o meu marido me batia. Ela ficou perplexa, boquiaberta, sem jeito. Aproveitei e aumentei muito a história. Ela perguntou se isso era freqüente e eu respondi que sim, que ele sempre me batia por qualquer motivo. Parece que, de tão amargurada, a pobre Kayo ficou sem dormir.

Solidária, um dia ela disse que iria me visitar.

Eu então respondi: “Não, Kayo. Não vá. É que ele bate nas visitas também”...

Eu não sei o que aconteceu com a cabeça daquela santa criatura. Pode ser que até vontade de realizar alguma denúncia ela teve. Ela deve ter desconfiado muito do meu caráter, da minha doente submissão. Deve ter comentado com o marido, com as vizinhas, com as comadres... mas que ela não apareceu em casa ela não apareceu mesmo. Ô.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 25/05/2010
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