O sonho e o corno...

Eu era criança, em Presidente Venceslau, morava numa casa madeira com cerca de tábuas, mais precisamente na Vila Bom Fim, a última vila da cidade. Foi nessa época que ganhei minha primeira bicicleta, uma monark azul, com garupa embutida e freio daqueles que a gente tinha que girar o pedal para trás para acionar, linda... Pedalava feliz da vida pra todos os lados, não conhecia fronteiras com a minha possante.

Nesse tempo, quase toda a molecada da rua tinha a sua bike, eu, Leandro, Moisés... Disputávamos corrida, empinávamos, andávamos só com a roda da frente, era o máximo. Entre uma derrapada e outra, uma empinada e outra, lá estava Edmilson, quieto num canto, ainda não tinha uma bicicleta como nós. Ficava só assistindo nossas peripécias e lambanças, sentado na calçada, mas não ficava triste. Edmilson tinha uma carta escondida na manga e Já havia alguns meses que ele estava juntando dinheiro entregando jornal, ajudava algum pedreiro das redondezas e, desse modo, comprava as peças de sua futura bicicleta, uma a uma. Adquiriu o garfo, pedais cromados, os raios da roda (daqueles mais grossos), freios com cabo, tudo zerinho e do que havia de melhor. Edmilson não queria uma bicicleta pronta, dessas que se compra na loja, queria criar sua própria possante. No começo, não cheguei a crer muito que conseguiria, mas o empenho de Edmilson era espetacular e ele mantinha suas peças sempre polidas, limpas, engraxadas e guardadas num quartinho fechado a sete chaves. Uma curiosidade imensa me apoderou e, até mesmo a ponto de perder um pouco da magia da minha própria bike, comecei a acompanhar passo a passo a fabricação da bendita. Lembro do dia em que comprou o quadro, era usado, mas era do modelo que ele queria. Passou quase um mês lixando-o carinhosamente e quando chegava da escola, todo mundo já sabia onde estava Edmilson... Alisando sua poderosa, claro. O dia da pintura do quadro foi incrível e eu mal me segurava de tanta emoção, queria saber como ficaria essa que é a parte principal de uma bicicleta. Mas no final ficou lindo... A cor era preta e as extremidades chamuscadas de amarelo. Minha ansiedade para dar uma volta nessa maravilha era imensa e insisti para que Edmilson montasse logo as rodas e os freios, mas ele se negava, dizendo que ainda faltavam muitas peças pequenas e queria colocar um jogo de marchas, pneus especiais... Ai, meu Deus! que agonia... Foram meses de economia, esforços, zelo e dedicação de Edmilson, até que chegara o dia final, em que ele tinha conseguido todas as peças para completar sua criação, aquela obra-prima. Nesse ponto do projeto eu até já sonhava com a bicicleta de Edmilson, que ela flutuaria e seria a mais veloz e mais bonita bicicleta da Vila Bom Fim... e eu, sendo amigo de Edmilson, seria o primeiro, depois dele, a dar uma volta nessa magnitude. Enquanto Edmilson montava, limpava e polia o acabamento final, seu pai, um caminhoneiro que só aparecia de vez em quando, um belo dia chegou em casa e, eu sabia o motivo, teve uma briga feia com a sua mãe. No dia seguinte, Edmilson estava proibido de sair de casa e foi assim por vários dias, até que se mudaram, ninguém sabe para onde e junto com eles, a bicicleta terminada...

Aquela bicicleta ficou na minha memória e acho que ainda vai ficar por muito tempo. Nunca experimentei a bicicleta de Edmilson e lembro que até chorei escondido, por nunca saber como seria pilotar aquela, que seria a melhor bicicleta do mundo... Nunca vi ela voar pela rua de casa, com aquele estilo e aquela beleza... Se eu fosse um cara rico, talvez até trocaria um carro desses importados, com tudo em acessórios por uma, só uma volta na bicicleta de Edmilson... Edmilson foi um artista, e seu pai, um corno ditador.

Gilmar Takano
Enviado por Gilmar Takano em 30/08/2006
Reeditado em 08/09/2007
Código do texto: T228425