A mandinga

"Mistério sempre há de pintar por aí..." (Gilberto Gil)

Laura voltava do trabalho e viu escrito em letras garrafais num muro perto de sua casa: “Vovó Laura do Zimbábue, traz seu amor de volta em 15 dias”. Seguia um telefone. Era um sinal! (Na verdade, as outras placas que ela já havia visto traziam a pessoa amada em menos de 15 dias. Geralmente eram 3 ou 4, mas vai ver que agora está tendo muita procura e a coisa ficou congestionada. Deve ter até senha para os santos trazerem todas as pessoas requeridas que lhes são solicitadas.)

Moral da história: Laura anotou o telefone. Quase bateu de carro, mas tudo ok. Ia ligar assim que chegasse em casa: queria trazer Vítor de volta. Podia ser que desse certo...

No entanto, resolveu, antes, telefonar para a sua amiga Beatriz e contar, para perguntar o que ela achava.

– Bia?

– Oi, Laura.

– Menina, cê não vai me chamar de louca?

– Pelo visto, vou, né...

– Ai, eu peguei o telefone de uma mãe de santo lá em Irajá e tou querendo ir lá já, há há, entendeu o trocadilho?

– Nossa! Péssimo! Mas como assim “peguei o telefone de uma mãe de santo”? Onde? Não vai me dizer que foi na rua?!

Laura murchou por dentro e por fora.

– Ué, foi... mas...

– ... Cê ta louca?!

– Eu sabia que você ia me chamar de louca, é sempre assim...

– Se você quer ir numa pessoa decente, eu te dou um telefone. Eu tenho uma pessoa super de confiança. Laura, minha filha, essas coisas a gente não pode ir indo assim na primeira pessoa que aparece, não. É que nem médico: tem que ser indicado. In-di-ca-do! Deu pra entender... Que loucura, pegar telefone de mãe de santo na rua. Foi onde? Alguém te deu um papelzinho, foi?

– Tava escrito num muro...

– Virgem de Deus! Tu enlouqueceu e a família não sabe. Que que você quer numa mãe de santo, pode-se saber?

Laura teve vontade de se transformar numa estátua de gelo e derreter.

– Ai, Bia, que vergonha!...

Bia ria por dentro.

– Fala, mulher, que que cê quer numa mãe de santo?

– Trazer o Vítor de volta. Pronto! Falei! Ah e que que tem de mais, tanta gente faz isso. Mal não há de fazer...

– Anota o telefone aí, o nome dele é Pai Joaquim d´Angola...

E deu o número.

Laura ligou na mesma hora. Marcaram dia e local.

A casa ficava em Jacarepaguá, e até não era tão modesta quanto o estereótipo da cabeça de Laura supunha. Tinha dois andares; até uma piscina! Pai Joaquim veio atender o portão: seus cinquenta e poucos anos, cabelos grisalhos, pele clara e olhos verdes, calça jeans, camisa polo e óculos de aros grossos e transparentes. Deus! Não tinha nada do que Laura esperava de um pai de santo... Mas tudo bem, já estava lá, ia até o fim.

Entrou. Pai Joaquim jogou búzios e foi logo dizendo:

– Você quer trazer alguém de volta.

Não foi uma pergunta, foi uma afirmação. Laura corou. Quis sair correndo. Que besteira estava fazendo, meu Deus!

– É...

– Olha, anota aí – e passou para Laura um papel e um lápis.

– Arruda, doze rosas vermelhas, um pano de cetim branco, sal grosso, uma galinha preta, um alguidar de barro e uma vela de sete dias rosa. Com a arruda, as rosas (mas só a metade, seis rosas) e o sal grosso, você vai tomar um banho do pescoço pra baixo. A galinha preta, o alguidar e a vela de sete dias, o pano de cetim e mais as outras seis rosas você vai colocar numa encruzilhada, à meia-noite de uma sexta-feira, com o nome da pessoa que você quer trazer de volta. Ah, e você tem que estar toda vestida de branco, e descalça.

– É, pai Joaquim, e em quanto tempo o senhor acha que ele volta...?

– Ah minha filha isso depende muito. Pode ser um dia, pode ser até um mês. Os orixás decidem, não sou eu.

– Tá bom. – Pagou e foi embora.

O pior vinha agora. Que vergonha de comprar aquilo tudo. E depois ir botar o despacho numa encruzilhada. Que vergonha! Será que ela podia levar a Bia com ela? Pelo menos dava uma amenizada...

Bom, se já tinha ido até ali, ia continuar. Onde vendia arruda?

– Alô, Bia? Onde vende arruda?

– Em casa de macumba...

– Nem pensar! Que vergonha!

– Então na feira...

Laura foi à feira. Procurou, procurou. Achou. Comprou um galho de arruda bem grosso. O feirante ficou olhando para a cara de Laura. Devia estar pensando: “macumbeira” – pelo sorrisinho de soslaio que deu. Laura foi logo avisando.

– É só pra dar cheiro bom na casa... – Não colou! O feirante riu, agora explicitamente.

Segundo passo: rosas vermelhas. Mais fácil. Mais fácil? Mais fácil nada. Onde é que já se viu uma mulher comprando uma dúzia de rosas vermelhas. Mas já tinha ido até ali, tinha que continuar.

Entrou na floricultura.

– Boa tarde. Tudo bom? É, a senhora tem rosas? – que pergunta estúpida, o que poderia ter numa floricultura...?

– Tenho. É só escolher.

– A senhora pode me dar uma dúzia de rosas vermelhas?

– Claro, é só a senhora escolher bem ali.

Laura foi lá e pegou as primeiras doze que apareceram.

– Estas estão ótimas.

– Pois não. Quer que faça um arranjo?

Laura sabia que não era preciso, mas preferiu dizer:

– Quero!

– E a senhora quer um cartão também?

Que situação, meu Deus!

– Sim, sim, claro! É pro meu namorado.

– Nossa, que legal! Eu nunca vi mulher mandando rosas pro namorado. É a primeira vez em vinte anos de floricultura.

Laura deu um risinho equivalente a: “ela está desconfiando que é tudo mentira”. Laura ainda foi além: “na melhor das hipóteses ela tá achando que eu vou mandar essas rosas pra minha NAMORADA!”. E arrematou em pensamento: “será que ela sabe que é pra macumba?”

A moça da floricultura fez um arranjo lindo, cuidadoso, com microflores e folhinhas verdes, botou o cartão dentro e fez uma pergunta fatal:

– A senhora quer dar o endereço pra gente entregar?

– NÃO! Quer dizer... não é necessário, eu vou entregar a ele pessoalmente...

– Que lindo! Toma. – Laura pagou e foi embora.

O cetim branco era fácil. Entrou numa loja de tecido e pediu um metro. Ponto final. Assunto encerrado. Se bem que um metro de cetim não dá para fazer nem um bustiê, né? Ah, mas como o homem da loja era mal humorado, nem puxou assunto, nada se falou e ficou por isso mesmo.

– Alô, Bia! Ai, como é que eu vou comprar agora o alguidar?! E a GALINHA PRETA????!!! Não vai dar! Que vergonha, meu Deus do céu!

– Ô Laura, você já comprou quase tudo, pelamordedeus, vai ter vergonha logo agora?

– Tá! Beijo.

– Beijo...

Daí Laura lembrou que tinha em casa uma panela de barro que ela nunca usava. Devia servir. É claro. Genial! Ia usar a panela como alguidar. Ufa, menos uma preocupação.

Mas a ga-li-nha-pre-ta!... Ninguém merece!

Parou num bar para tomar café e pensar na estratégia. Porque entrar numa avicultura e pedir uma galinha é uma coisa, mas pedir uma galinha especificamente PRETA é outra. Mas era demais para ela. Não ia dar. Ela já imaginou o homem da avicultura respondendo: “Como é que eu vou saber se essa galinha era preta, branca, azul ou amarela?”

– Bia? Olha, eu decidi: eu vou comprar a galinha no mercado...

– O quê? Mercado?

– Ai, é: uma galinha congelada. Daí eu ponho no micro-ondas e levo pra fazer o despacho. Que diferença vai fazer? Ela tá morta do mesmo jeito...

– Mas não pode Laura. Como é que você vai saber se ela era preta?

– Eu jogo tinta preta.

Beatriz deu uma gargalhada.

– Na galinha congelada?

– Congelada não! DES-congelada!

– Ai, Laura, cê não tem jeito... Que que eu posso te dizer? Vai fundo, amiga, pede licença aos orixás e faz isso.

– É...

– Mas posso te dar um conselho?

– Hãn?

– Compra a galinha, mas esquece esse negócio de jogar tinta, viu? Descongela e pronto, seja o que Deus quiser!

– Tá bom, melhor ainda!

Laura foi ao mercado, comprou a galinha (comprou uma enorme, a maior de todas, para compensar a não-pretidão), comprou um saco de sal grosso e a vela de sete dias cor-de-rosa. Foi pagar no caixa.

A moça do caixa passou a galinha, passou o sal grosso, passou a vela de sete dias. Deu o preço:

– Vinte e dois reais. É dinheiro ou cartão?

Laura abriu a carteira e falou:

– Dinheiro.

Foi quando surgiu a frase inesperada vinda da moça do caixa:

– Olha, senhora, a senhora não me leva a mal não, viu? Mas fazer oferenda com galinha congelada eu nunca ouvi falar...

Congelada ficou Laura! Como a mulher do caixa sabia que era para oferenda?

Ai, mas é lógico! Galinha, COM sal grosso, COM vela de sete dias rosa, não haveria de ser para um jantar à luz de velas. Mas Laura retrucou, linda, loira e egípcia:

– Não, moça, é pra um jantar à luz de velas com meu marido... – Aquilo saiu tão enviesado – ainda mais com o olhar da moça do caixa direto na mão esquerda de Laura, onde NÃO havia aliança DE casada –, que mais fácil e natural seria se ela tivesse dito: “Não moça, isso é pra fazer uma bomba nuclear e destruir a Palestina!” A moça do caixa olhou, cabeça baixa, olhos levantados, queixo caído, olhar de peixe morto e me saiu com um:

– Ahãn!

Laura nem olhou mais para a cara dela. Pagou com vinte e cinco reais, não pegou o troco botou tudo numa sacola e saiu quase correndo. Ou teria sido REALMENTE correndo?

Foi para casa. Escreveu o nome completo do Vítor num papel.

Agora vinha o pior: arriar o despacho. Já era sexta-feira. Ela ficou pensando numa encruzilhada onde não passasse ninguém. Não conseguiu lembrar de nenhuma. Ligou para a Beatriz.

– Oi, Bia.

– E aí, minha filha, comprou tudo?

– Tudinho. A galinha tá no micro-ondas descongelando.

– Cuidado pra não cozinhar...

– Bia, eu tenho que te perguntar: onde é que tem uma encruzilhada que não passe ninguém? NIN-GUÉM!!!!

– Olha, à meia-noite já é difícil de ter gente na rua... Se bem que hoje é sexta-feira, né? O pessoal sai...

– Pois é! Que situação. Ai, minha Nossa Senhora!

– Ah, tem uma que eu conheço, mas é lá no alto da boa vista.

– Eu topo, me diz como chegar lá.

Beatriz explicou direitinho.

E lá foi Laura com tudo no carro. Se vestiu com um vestidinho todo branco e levou os ingredientes todos. Antes disso, porém, tomou o banho, conforme pai Joaquim ensinara.

Achou a tal encruzilhada. É, era bem deserta. Deserta até demais, dava medo.

Tirou o chinelo. Botou o cetim branco a panela de barro – servindo de alguidar – por cima do pano, a galinha descongelada dentro, a vela de sete dias ao lado e o nome completo do Vitor dentro do alguidar, seguindo as ordens de Pai Joaquim. Acendeu a vela, colocou as rosas vermelhas ao lado e saiu de costas.

Quando estava entrando no carro, ouviu uns cachorros latindo e o portão da casa em cuja frente fizera o despacho se abriu lentamente. Entrou no carro e bateu a porta às pressas, já com a chave na ignição para zarpar dali que nem um foguete.

O portão abriu totalmente.

Laura petrificou. Um rapaz foi colocando a cara de fora... Era Vítor.

Laura quis se transformar numa árvore. Maldita Beatriz: tinha dado o endereço do Vítor. Laura sabia que ele tinha se mudado, mas não sabia para onde. Beatriz sabia, porque eram amigos. E tinha mandado Laura exatamente para a frente da nova casa do Vítor. Isso lá é amiga?!

Vítor olhou aquilo tudo, viu uma moça de branco dentro do carro, a princípio sem definir bem, mas enfim reconheceu.

– Laura?

Ela saiu do carro como se estivesse catando conchinhas na praia:

– Oi, Vítor?

Mas então veio o milagre. Vítor falou:

– Ai, tão sempre fazendo despacho aqui em frente. É toda sexta-feira, sem exceção, desde que eu me mudei pra cá.

Ele não sabia que aquele despacho havia sido feito por ela. E continuou:

– E você, tá fazendo o que por aqui, Laura? Pode-se saber? – com um risinho simpático.

– Vim visitar uma amiga e já tava de saída.

– Ah tá. Quer entrar e tomar uma cerveja?

Na cabeça de Laura se passou: será que pode? Tomar cerveja no dia do despacho? Respondeu:

– Peraí, deixa eu pegar um negócio dentro do carro.

Entrou no carro de novo e ligou para a Beatriz.

– Beatriz, sua nojenta! Você sabia que aqui é a casa do Vítor, né? Me jogou na cova dos leões? Mui amiga!

Beatriz deu uma gargalhada:

– Ué, mas aí o despacho ia ser mais forte ainda!

– Pois agora ele apareceu e tá me convidando par entrar e tomar uma cerveja.

– Não disse! É pá pum! Tiro e queda. Vai que é tua, minha filha!

– Mas será que pode tomar cerveja no mesmo dia do despacho?

– Pode sim, o despacho já deu certo.

– Então tá. Beijo. – E desligou.

Entraram os dois na casa de Vítor.

Depois disso, parou um outro carro e arriou outra oferenda. Era uma senhora muito elegante com um rapaz de seus dezoito anos. Puseram um alguidar branco, várias velas azul-claras e um ramalhete de flores do campo. Entraram no carro e foram embora.