SIRICUTINGA

Era um dos meus medos, não o mais importante, mas um deles. Não encontrei esta palavra nos dicionários e sim, surucutinga, mas eu vou conservar a grafia porque eu quando criança tinha medo de siricutinga e não dessa outra aí.

Diziam ser uma cobra muito grande. Tinha o dorso esverdeado e uma série de anéis entrelaçados em forma de oito de cor amarelo-ouro da cabeça até à ponta do rabo. Cabeça de cachorro, mas matava usando um enorme ferrão existente no final da cauda. Não matava à-toa. Somente atacava aqueles que entravam no mato para cortar as árvores. Então eu não precisava ficar cagando perna abaixo com medo dela porque na minha idade nem tinha força suficiente para levantar um machado. Acontece que meu avô ia com os empregados tirar madeira ou lenha seca para a fornalha na mata por cima da casa do “seu” Gilo e me levava – não sei pra quê – e havia som de machadadas, não importando se eram em madeira viva ou morta. Na minha concepção, a siricutinga não ia diferenciar se a árvore estava seca ou não; quem estava ou não com o machado e pegaria o primeiro que pudesse ou que fosse mais fácil. Ela estava ali para chutar o pau da barraca. Sobraria pra quem?

Vovô era baixo e deveria correr pouco, mas tinha a espingarda e provavelmente a cobra não o atacaria, já que eles diziam ser ela muito matreira, percebendo de longe o cheiro da pólvora. Mané Gambá, Mirá e Zé Mafada eram enormes, pernas longas e fortes. Acho que eu não teria nenhuma chance. E tome adrenalina!

Segundo também afirmavam, ela atacava pelo alto, deslizando pelas galhadas nas grimpas das árvores e seguindo o som do bater dos machados. Se não havia nenhuma outra árvore e se cortavam aquelas isoladas nos morros, ela vinha por baixo, rastejando e se você corresse de morro abaixo, a malvada enrolava-se como um pneu e descambava atrás do candidato a defunto. Por mais que você corresse, ela o alcançaria e quando estivesse perto, dava-lhe uma trombada e se enrolava no seu corpo. Mordia só na cabeça, enfiava o ferrão, matava e não comia o cara. Deixava lá para os urubus que, segundo os mentirosos da época, também o rejeitavam porque o veneno da diaba era de lascar, matando até os fura-couros.

Vários foram perseguidos, segundo as suas versões. Nenhum apanhado. Curioso! Acho que era pura invenção, má vontade de trabalhar na mata ou tinham tanto medo quanto eu e não tinham coragem para dizer.

Eu nunca entendi bem a presença de uma grande árvore nos limites da Serra da Buracada. Ela ficava isolada, um grosso tronco e uma copa escura enorme entrando pelos céus adentro. Numa época do ano, em setembro, transformava-se numa bola vermelha sem uma única folha. Só flores.

Foi poupada por quê? Certamente deveria ser madeira furreca e quase certo, seria um sanandu. Ela estava fincada perto da mata da siricutinga e próximo havia uma pedreira com grutas maneiras para ela morar. Eu ficava matutando se não foi a cobra que a defendeu.

A árvore era muito bonita e provavelmente a serpente tinha certo rabicho por ela. Dizem existir fincado no seu tronco um velho machado enferrujado pelo passar dos anos e que um lenhador foi atingido por um raio quando tentava derrubá-la numa tarde de tempestade. Bem feito! Todo mundo por lá sabia que não se devia tocar em instrumentos de aço quando estava relampejando.

Pode ser. Outros dizem ter sido a cobra que botou o malvado para correr quando ele tentou destruir seu cantinho preferido para àquelas horas da canícula do verão ou para enrolar-se preguiçosamente nos dias frescos e cheirosos da primavera.

Ora, vejam só! Vou parar com este texto! Daqui a pouco transformo aquele monstro embutido no meu cérebro de criança medrosa e que esgotou por várias vezes a minha reserva de adrenalina. Como não? Com minha varinha de condão posso inventá-lo como uma ilusória criatura transvestida no mais virtuoso poeta: odes e odes encantadas soltas na frescura dos ventinhos da serra, temperadas com o aroma das flores carmíneas e inebriadas pelo zonzonar dos insetos num mágico dia ensolarado de certa primavera invulgar.

Ah! O cérebro! Faz, desfaz! Cria, modifica, destrói! Encantador! Maravilhoso! Eu amo o cérebro!

Dbadini
Enviado por Dbadini em 06/06/2010
Código do texto: T2303799