MANTA

Meu pai foi um dos poucos a me incentivar para os estudos, mas por precaução, decerto, também me orientava como fazer bons negócios. Naturalmente ele não estava muito cônscio da coisa dar certo e se não desse para um lado, safa no outro. Um verdadeiro filósofo das incertezas! Nunca jogava somente na cabeça; cercava pelos sete lados, manjou? Todo mundo por lá era negociante de bois, cavalos, galo de briga, produtos agrícolas e mais o que houvesse. Menos eu. Nunca me interessei pela arte.

Dizia-me ele que um bom negociante nunca deveria ficar à toa, mas sempre andar à toa. Lembrava que andando, zanzando sem rumo certo pela estrada sempre se encontra alguém, bate um papo, toma cafezinho e às vezes, sai um "nigucim". Se ficar em casa curtindo preguiça, babau...

Outro conselho que me pareceu ser o artigo um, parágrafo único daquela penca de itens: nunca dizer ao dono que você percebeu um defeito do animal negociado. Segundo ele, se ele pensar que lhe está passando a perna, você terá mais chances de regatear. Ele pensa que está manteando e acaba entrando bem, dizia-me.

Um cavalo que sofre tombos frequentes – e por isso não vale nada - normalmente tem as juntas das patas dianteiras sempre feridas ou desprovidas de pelos Normalmente um cavalo não cai de prancha, de lado; ele tropeça, apoia os joelhos (ou cotovelos?) no chão e depois sim, capota. Isto é o mais comum. Se você observar este detalhe, boca de siri. O dono vai pensar ser você um otário e provavelmente poderá comprá-lo para vender para produção de soro no Vital Brasil a preço de bananas. Agora pé atrás com os ciganos, alertava-me. São muito espertos.

Havia uma meia ética (existe?) nestas transações. Se o comprador perguntasse, o que meu pai nunca fez, você deveria apontar o defeito. Poderia usar alguns artifícios, na minha visão, nada éticos, mas deveria dar pelo menos uma pista do que foi perguntado. Como aconteceu com os dois fazendeiros entabulando um negócio de um burro. Perguntado se o animal tinha defeito o outro disse:

- Se tiver, tá na cara!

Este “tá na cara” poderia ser um defeito na cabeça, na cara do animal ou então significar que se tivesse estaria visível, bem à vista. Negócio feito, o comprador foi-se e depois de certo tempo voltou para reclamar ser o burro cego de uma vista.

- Eu disse que o defeito estava na cara. Imaginei que você não se importava com isso. Não tenho culpa!

Vadinho, morador da região, também gostava de fazer negócios, mas, segundo alguns, não tinha muita sorte. Estava sempre levando cada manta, cada ferrada e não aprendia. Era capaz de comprar uma velha bicicleta, reformá-la todinha – era bem habilidoso nisso - e depois trocar por uma outra coisa que não tinha nem um terço do valor. Ainda bem que não faltavam parceiros para ele. Sempre havia alguém chegando e provocando uma compra ou troca.

E assim foi com um cavalo. Comprar ou trocar coisas na roça é para se ter paciência e saco. Como aquilo rende! Ficam ali naquela conversa de cerca Lourenço; sentam, levantam, andam ao redor, pica fumo e faz cigarro de palha, falam baixo, gargalhadas, fuxicos com a mulher dos outros; enfim, pode durar uma manhã, um dia todo ou então ficar "dipendurado" para outra oportunidade, no dia seguinte, na outra semana. Na próxima vez o papo reinicia ali onde ficou "dipendurado" e o negócio segue ou morre.

Com o Vadinho não era bem assim. Dificilmente o negócio ficava "dipendurado". Pá daqui, pá dali e em pouco tempo já estavam trocando o arreio e os outros apetrechos de um cavalo para o outro. Negócio fechado, o visitante montou e disparou a galope várzea afora, levantando poeira e sumindo.

No dia seguinte, já cedo, ele voltou. Nem desceu da montaria e meio sem graça, sem jeito mesmo de falar, iniciou dando aquela volta enorme no papo. Enfim, disse ter chegado em casa, olhou bem o animal e ficou meio arrependido. Quase não dormiu à noite, com uma coisa batendo, buzinando na cabeça dele. Pela manhã, de novo aquilo azucrinando seu juízo e por isso ele estava ali.

Vadinho manjou e já não estava de cara muito alegre, meio sisudo, olhando mais para o chão do que para o moço a sua frente. E não perdeu tempo:

- Olha! Foi a primeira vez que a gente fez um negócio e por aqui a palavra da pessoa vale tudo. A troca foi feita, você teve tempo de sobra para ver e eu não aceito destrocar. Negócio é negócio! Fechou, tá fechado!

O rapaz ouviu quieto e não transpareceu mágoa. Virou-se um pouco de lado, abriu uma bolsa na aba da carona e retirou de lá um pequeno e tosco pacote, amarrado com um barbante branco em forma de cruz:

- Você me desculpe, Vadinho. Eu estava meio sem jeito de começar, mas a manta que você tomou ontem foi tão grande, moço, que eu não fiquei sossegado, me arrependi e passei na venda do Tivinho, comprei este corte de pano pra mandar fazer uma camisa pr’ocê. Toma!

Esporeou o cavalo e após alguns passos, puxou as rédeas. O animal rodopiou sobre as duas patas traseiras e fez meia volta:

- Vou passar por aqui de vez em quando para nós tabular outra troca. Quem sabe naquela vez ocê pode ir à forra? Inté!

Dbadini
Enviado por Dbadini em 06/06/2010
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