Sonhei com Clarice

Sonhei com Clarice. Estava dando um curso sobre os eventos mais importantes da sua vida. Como traduziu tal livro, como adaptou tal novela, como ilustrou tal capa (ela fez mesmo isso?). O curso ocorria num bairro elegante, mas o local era, surpreendentemente humilde, em andar alto, um piso de tacos soltos e arrebentado. Havia uma fila de pessoas para levar ‘a Clarice os seus cepêefes, seus erregês, ou sei lá o que (achei que eram carteiras de identidade), para que pudessem ter um desconto no curso.

Não tinha o meu erregê e mostrei uma velha carteira amassada, onde Clarice achou uma frase comoventemente inocente, manuscrita ‘a lápis: “hoje dei alta ao major von Recklinghausen”.

Quando me aproximei de Clarice, estava com um pouco de medo dela. Ela era alta, com a pele extraqueimada de sol, o que enruga a pele das louras. Vi o seu pescoço enrugado, ‘a altura dos meus olhos, quando me inclinei para ler a tal inscrição. “Ah, lembrei eu, isso é do tempo em que prestei serviço militar; servi nas enfermarias, e esse major ali estava, reclamando de dor de barriga... Eu escutei, disse que não era nada e o mandei passear... Mal sabia eu que era o major von Recklinghausen!”.

Clarice me olhou com uma certa severidade e disse: “Bem, está resolvido, 30% de desconto...” Enquanto isso, eu revirava os bolsos, tentando encontrar um documento qualquer que provasse ser estudante. Clarice vendo o meu constrangimento reafirmou: “Já está resolvido, 30%, como todos os outros”.

Ela bateu palmas e a audiência acompanhou. Gritavam o meu nome, eu me virava para agradecer e os aplausos reacendiam. Clarice tomou a iniciativa de acalmar a platéia, contando alto um número. Contou até doze até eu sair da sala.

***

Foi bom ter sonhado com Clarice. Acordei no meio da noite feliz e rindo daquela festa de aplausos e de minha súbita popularidade. Lembrei, então de Clarice e da verdadeira idolatria que eu tinha por ela, ainda que não entendendo bem os seus livros. Aquela frase de Joyce, “perto do coração selvagem da vida”, que ela usou no título de seu primeiro livro, impressionava.

Clarice me fascinava porque, eu achava, que era como eu: levava ‘a sério a vida e as coisas da vida. Levava tão ‘a sério, que pouco conseguia conversar com as demais pessoas, que decididamente não eram nossos semelhantes porque não levavam a vida ‘a sério. Isso era uma doença, uma doença de eternos adolescentes, não os adolescentes brincalhões, mas patinhos feios que ainda não mudaram de casca.

Assim era eu e assim eu achava que era Clarice, através da única foto que vi dela, na orelha de um livro. Alta. Bela. Triste.

Eu nunca conversei com ela. Mas durante algum tempo achei, dentro da minha forma inadequada de conversar com pessoas do clube das pessoas sérias, um jeito de me corresponder com ela. Escrevia longas cartas manuscritas para o Jornal do Brasil e achava que era correspondido. Comprava o jornal sábado de manhãzinha e lia e relia suas crônicas, trêmulo procurava nas entrelinhas mensagens que pudessem significar respostas ‘as minhas cartas ensandecidas. Assinava-me HF, que era uma menção ‘a Henry Flower, pseudônimo que Leopold Bloom, o personagem do romance Ulisses, ele próprio o Ulisses, de Joyce, usava para conquistar as suas amantes.

Coitada da Clarice, ter que agüentar as chatices de um adolescente apaixonado, que queria, simplesmente namorá-la! E com esses enigmas ridículos!

Um dia ela lançou o romance “um aprendizado”, acho que era esse o título e quase desmaiei quando li que o personagem mais experiente, um professor de filosofia, que namorava a heroína (na verdade, acho que ele a estava iniciando nos mistérios do sexo) chamava-se Ulisses!

Levei meses decidindo se isso tinha ou não relação com as minhas cartas. Mas acabei esquecendo de tudo. Clarice morreu e eu nunca conversei com ela, até que vinte anos depois, a vi em sonhos. Foi um belo sonho... E o major von Recklinghausen teve alta...