REJEIÇÃO

Fui chamado de talhado. Dá pra acreditar?! Ta-lha-do. Sei que não era ofensa, era mais uma constatação, mas vindo daqueles lábios tão doces e femininos, me doeu. A frase solta num momento de fúria quando tive problemas com o carro indo buscá-la para jantar, ainda repercute em meus ouvidos: “Você não serve pra mim, você é muito talhado”. Eu que acreditava que éramos iguais e vi nela uma parceria promissora, descubro agora através da rejeição o que parecia obvio e serve de lei para qualquer físico, químico ou amante mais experiente: os opostos se atraem, e os iguais se repelem. Fui rejeitado por ser talhado. Senti-me remetido a uma musica de Roberto Carlos, logo eu que detesto clichês bregas: “Não quero mais seu amor, não pense que eu sou ruim, vou procurar outro alguém você não serve pra mim”.

Não sei o que ela entende por talhado. O que pensar de alguém que confunde o trabalho de entalhe em madeira com a lapidação de uma pedra preciosa. É esse o contexto, segundo ela, sou refinado demais para os seus padrões (que padrões esses, meu Deus!...), ela quer alguém mais ogro, mais grosso, selvagem, ou seja, mais homem das cavernas.

O adjetivo não é ofensa e também não o vejo como afronta a minha masculinidade. Sei que jamais dei motivos para isso. É como disse mais uma constatação. Poderia ter dito que não, ter jurado mudar, deixar de ser quem sou. Mas já estou velho demais para essas mudanças e pensando bem, se ela é incapaz de valorizar o homem que sou, encontrarei alguém que o faça. Sofro mas me resta o orgulho de continuar a ser alguém com quem já estou tão acostumado, eu mesmo.

Fui criado para acreditar que um pouco de cultura me abriria portas. Sou sensível a arte. Tenho por habito ler e escrever. Aprecio filmes antigos, especialmente os clássicos e vou a exposições e teatros com relativa freqüência. Jogo xadrez e sei diferenciar uma tela impressionista de uma surrealista. Prefiro Monet à Salvador Dali. Conheço o básico de Historia e mitologia muito antes desses jogos modernos de videogame invadirem a vida dos jovens e fazê-los se interessar pelos deuses do Olímpo ou pela Divina Comédia. Gosto de aprender e viajar. Diversão pra mim é muito mais que uma camisa suada de futebol e um pedaço de carne em churrascos de fim de semana, ainda que não seja uma vegano e torça com paixão pelo meu time.

Esse sou eu, nem melhor ou pior que ninguém, mas reconheço diferente. Com estilo próprio. Sempre mantive meu leque de opções vasto para possíveis interesses. Agora vejo que falhei por não me atentar para questões mais praticas. Porque não sou aceito como sou? Achei que o motivo que nos atraia e que fazia com que nos admirássemos reciprocamente bastasse para que quiséssemos ficar juntos. Foi engano. Ilusão.

Naquele dia o carro repentinamente parou de funcionar, isso estando a apenas a dois quarteirões de sua casa. Mexe aqui, mexe ali e nada... Joguei a toalha assumindo que não sabia qual o problema no veiculo. Diante da frustração de termos que adiar o compromisso surgiu a frase que me atormenta. Ficou claro que ela preferia ter a seu lado um cara que entendesse tudo de motores e que soubesse de cor a escalação dos times do campeonato brasileiro.

Sou pior que alguém por desconhecer questões como a quantidade ideal de areia e cimento numa obra ou por conseguir viver sem uma caixa de ferramentas debaixo do braço? Acho que não. Afinal eu sei que o vinho Romanée-Conti produzido no sudoeste da França é um dos melhores do mundo. Quantos homens sabem disso? Quantos podem viver sem essa informação? Eu não.

“Talhado”, que palavrinha essa... Capaz de desconstruir toda a alto-estima que levei anos para formar. Agora estou aqui remoendo esses pensamentos com uma taça de vinho a mão e ouvindo a Nona Sinfonia de Bethoven enquanto ela deve estar se preparando para ir a um baile funk. Que ilusão acreditar que éramos semelhantes. Quantas ciladas a paixão apronta. Percebo tardiamente que no complexo universo feminino preferências opostas convivem em harmonia.