O ônibus

Em pé no ponto, espero o meu ônibus. Meu, apenas, porque desejo parecer ter alguma importância, e não ser apenas mais um vivente, necessitando desesperadamente chegar ao trabalho.

Passa um, passam dois, passam três, passa o tempo, passam pessoas, como eu transparentes para o sistema, sem importância maior para o estado e para o serviço público de transporte. Uma infinidade de carros também passam, passam inclusive motos, triciclos e bicicletas, até cavalos, eqüinos é claro, passam, montados por policiais em ronda. Cachorros e pássaros também passam pela rua, e até mesmo o vento passa direto, porém, exatamente, o meu ônibus não passa.

Olho o relógio, não tem ponteiros, é digital. Simples, também não possui iluminação própria, muito menos back light, mas não faz falta pois é manhã e a claridade do dia já é o bastante. Foco os segundos que parecem ignorar minha ansiedade por cumprir um horário, e eles correm, saltam 1... 2... 3... 59... 60... E de novo 1... 2... 3... 59... 60... E de novo...

Vem meu ônibus, que bom, vem vazio. Que ótimo, vou poder sentar e parecer gente, sendo transportada decentemente. Preparo-me, faço sinal de parada, o danado do ônibus vem, chega mais perto, o motorista me vê, parece sorrir sarcasticamente e faz algum gesto que não consigo entender.

Ele, o coletivo, se aproxima, se aproxima... e se vai, vai embora, direto, não para. – Desgraçado é o mínimo que grito. Olho para relógio que luta contra minha vontade, e me desafia continuando a correr, 1... 2... 3... 59... 60... E de novo 1... 2... 3... 59... 60... E de novo... Olho de volta para a rua e vejo outro ônibus: Que bom penso logo, sinto certa vergonha pelos depravados adjetivos que de raiva proferi contra o motorista anterior.

O sinal daquele motorista informava que vinha outra viatura atrás, agora eu entendi o significado daquele gesto. Continuei sem entender o sorriso sarcástico, mas deixa para lá, novo ônibus, e desta vez ele vai parar.

Animo-me de novo, talvez até dê para cumprir o horário. Aproximo-me do meio fio, faço novo sinal, e este agora para bem à minha frente.

Que “merda” penso eu, está lotado! Aquele sorrisinho desgraçado era sabedor desta desgraçada situação. Eu, mochila, mais de cem quilos de peso, e um ônibus totalmente lotado. A mãe daquele outro motorista já deve ter morrido, se não eu mesmo, naquele momento, gostaria de mandá-la para o inferno. Como ela pôde parir um ser desta espécie.

Pessoas parecem pacotes de carga comum, entulhadas naquele ônibus. Sinto que qualquer transportadora séria, de pacotes e carga avulsa, cuida melhor de sua carga do que este transporte público cuida de nós.

Parado no ponto, ficou o ônibus por mais de cinco minutos, apenas esperando ser encontrada alguma nova arrumação para que pudéssemos entrar, quatro passageiros. Eu, um senhor que podia ser ele próprio meu pai, uma jovem arrumada que identificava com minha filha, pela jovem idade e pela forma vaidosa de se vestir, e finalmente um outro sofredor, mais novo do que eu. Por educação, mesmo tendo este coletivo parado bem a minha frente, cedo lugar para o senhor e a jovem menina. Não é que o ignorante do cavalheiro, tenta furar minha frente. Zangado como estava, dei-lhe um safanão que ele quase que foi atirado ao chão. Pena dele, senti nenhuma. Não sou mau, mas estava possesso com a atitude do motorista anterior.

Vontade, tinha de seguir até o ponto final e sair espalhando socos e pontapés naquele energúmeno condutor. Mas aos poucos a velha educação vai retornando, e a ética humana agora mais coordenada pela mente ,outrora impulsiva, me faz retornar o foco ao transporte e a chegada ao meu serviço.

Olho alguns dos passageiros, só dá mesmo para olhar para alguns, uma vez que a posição que consegui assumir parecia totalmente estabelecida, por fortes apoios corporais, dos demais passageiros. Quase só consigo movimentar meus olhos, por sorte sendo um pouco maior que a média, meu pescoço ainda tem alguma liberdade. Privacidade, nenhuma. Sou quase capaz de afirmar o que cada um dos passageiros mais próximos a mim comeu no café da manhã, saberia sem errar dizer os que tinham chaves ou carteiras nos bolsos, sentia-me quase estuprado em minha dignidade.

Transporte coletivo, não, transporte de pessoas sem valor, de seres humanos sem direito a humanidade. Transporte que mais parecia uma provação de resignação. Mas o que fazer, não posso ir de taxi, impossível sustentar, não posso ir de carro, não posso ir a pé, só posso ir de ônibus.

Será que o secretário de transporte público anda de ônibus? É claro que não. Se andar deve andar de “frescão” particular. Será que o prefeito, o governador, algum vereador ou deputado, mesmo senador, anda de ônibus? Será que o projetista daquela lotação anda de ônibus? Nos bancos, mal cabem duas pessoas, as pernas vão presas entre os quadris e o encosto do banco da frente. O corredor... Corredor que mal cabe uma pessoa e sua mochila, mas transportava quase três filas completas de passageiros, eu era um dos felizardos que ocupavam a fila do meio, meio do inferno, o próprio diabo, que de burro não deve ter muita coisa, nem chega perto desta condução, se nega a ser transportado daquele jeito, mas nós, humanos, não temos outras opções.

Transporte público, ônibus público nada, particular. Concessão irresponsável esta que permite ao concessionário transportar seres humanos como bagagem de terceira, ônibus dos diabos sim...

Arlindo Tavares
Enviado por Arlindo Tavares em 09/06/2010
Reeditado em 09/06/2010
Código do texto: T2309480
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