PORQUE É DIA DOS NAMORADOS...

Não fiz teatro quando, ao me acordar, percebi que estava sozinho na cama. Igual a todo dia troquei de roupa, escovei os dentes, e ao descer à cozinha para tomar café, encontrei sob a garrafa térmica um bilhetinho com a letra dela... Quem, por costume falava até pelos cotovelos, escrevera apenas “Estou indo embora”.

Durante a manhã inteira, mesmo estranhando sua ausência, me consolava, pois aquela não seria a primeira vez - vista de perto a vida de nenhuma pessoa é um mar de rosas! Ela não devia ter ido longe. Era quando muito um susto, por culpa de minhas andanças noturnas. Chegou o almoço, deu hora da janta, e nem ao menos um telefonema dela, a cobrar!

O tempo ia passando, contudo eu me aguentava firme: não vou atrás. Tenho que manter a fama de machão latino-americano! O que a convencida não iria dizer depois? Logo ela que vive me jogando na cara, que por sua causa arrasto sozinho, pela Rua da Olaria, acima - a ladeira mais íngreme da cidade de Bom Despacho -, uma carreta-tanque abarrotada de gasolina! Mas, diabo, que falta ela me faz...

Agora, quem vai brigar comigo quando eu deixar roupa suja fora do cesto, sapatos perdidos pela casa, e, pecado mortal - esquecer a toalha de banho molhada, em cima da cama? De quem ouvirei sermão por ir ao banheiro sem fechar a porta; ou não levantar a tampa de assento do vaso, deixando ela borrifada de mijo! Se o gás acabar, justo na hora de fazer comida, quem se descabelando ameaçará pular pela janela do terceiro andar, porque o botijão de reserva está vazio, há um mês, na área de serviço?

A vida sem ela não teria a menor graça. Para quem vou declamar os poemas apaixonados de Pablo Neruda? Quem vai reclinar a cabeça no meu peito, enquanto ouvimos na penumbra do quarto uma daquelas canções dilacerantes do Cat Stevens? - The first cut is the deepest (A primeira ferida nunca cicatriza). Ou, nas quermesses angariando fundos para os pobres da paróquia, quem dançará coladinha em mim as baladonas românticas do Rod Stewart? - You’re in my heart (Você mora no meu coração)?

Já passa da meia-noite e nenhuma notícia dela... Quem mais irá me bronquear por limpar os pés no tapete, quando chego da rua; dormir com a tv ligada; soltar pum embaixo dos cobertores. Enfim poderei assistir um filme-cabeça, sem que ela esteja ao redor me torrando a paciência, para ver pela undécima vez comédias água-com-açúcar tipo: Uma linda mulher, A dama de vermelho?... Nas refeições, quem se implicará comigo por eu batucar com os talheres, na borda do prato? De quem vou esquecer o aniversário?

Uma viatura da polícia - com a sirene ligada - desce a toda velocidade pela rua. Meio desperto salto da cama, batendo em-pé no meio do quarto. Todavia zonzo, como se tivesse bebido o estoque do barzinho de casa, ouço a voz dela, na copa. Límpida, afinada, e como sempre provocante cantando um samba antigo e profético do Chico Buarque: “Apesar de você, amanhã há de ser, outro dia. Você vai se dar mal, etc e tal...”

" - Puxa vida, felizmente tudo não passou de outro horrível pesadelo!" Exclamo para me tranquilizar, enquanto sobre a bancada do closet avisto uma caixa embrulhada com papel de presente. Logo acima, no espelho, desenhado a batom, um coração enorme com as iniciais de nossos nomes, crivadas por flechas. Ao lado, na mesma superfície lisa, onde tento me reconhecer - pela imagem refletida -, sua inconfundível caligrafia enfeitada por lacinhos, me deseja "Feliz Dia dos Namorados!"... Caralho! As lojas estão fechadas hoje e eu não comprei sequer uma calcinha - de um e noventa e nove -, pra ela...

dilermando cardoso
Enviado por dilermando cardoso em 10/06/2010
Reeditado em 07/03/2011
Código do texto: T2311498