O Fetiche erótico

“(...) O que amo nela é o pé fofo,

este pé de anjo que me fascina, que

me arrebata, que me enlouquece!”

(...) José de Alencar, A pata Gazela.

O “fetiche” dos franceses é o mesmo “feitiço” dos portugueses. Foi assim: a palavra fetichismo traduz a herança dos povos primitivos, o pensamento mágico dos selvagens, onde um objeto inanimado era dotado de “mana”, de força, de espírito a exercer sobre os pobres mortais influência espiritual. Podia ser a árvore, o boneco espetado de alfinetes, a pedra, o rio, a lagoa “encantada”. Mesmo com o avanço da civilização (civilização?), mesmo assim, o homem não deixou, (ao lado do pensamento lógico, aristotélico), de manter os resquícios arcaicos do pensamento primitivo. Benzer-se diante da igreja, não passar em baixo de escada, assistir a jogos de seu time com a mesma camisa, acreditar nos livros de auto ajuda da vida ou nos misticismos da TV – Novela–Global – são evidências do pensamento mágico no inconsciente coletivo do homem dito lógico, quem disse: “Deus, quer queira, quer não, está sempre presente numa forma primitiva de fetiche”. O feitiço, virando ou não contra o feiticeiro, ainda exerce sobre os homens enorme influência.

A Psicologia e a Psiquiatria incorporaram o vocábulo fethichismo quando se observou que objetos inanimados (“soutiens”, calcinhas, sapatos, etc.) ou partes do corpo humano (cabelos, nádegas, pernas, seios, etc.) exercem um foco de excitação sexual mais que o comum, em nível normal ou patológico, sobre todos os indivíduos.

Em nível “normal” somos fetichistas, quando há tipos para todos os gostos: altos, baixos, louros, morenos, gordos, magros. Ou quando há detalhes específicos de atração, como seios grandes, pequenos, mamilos róseos ou escuros, cabelos lisos ou encaracolados, nádegas grandes ou em tábua, olhos redondos ou oblíquos, dentuços ou prognáticos, enfim, pés retos ou tortos para vários sapatos. E leve-se em conta não haver paradigmas estáticos para os mais bizarros gostos. Senão, Balzac não seria atraído por balzaquianas. Nem Charles Baudelaire e René Descartes por mulheres estrábicas!

Também se não houvesse um fetiche em nós, o “marketing” não o exploraria e não faria pesquisas de mercado para estabelecer até o interesse da opinião pública por nádegas, como fez a fábrica inglesa “Falmer International Limited” em 1979. Segundo a revista ISTO É de 29 de agosto de 1979, foram os cientistas e anatomistas quem estabeleceram dez tipos de nádegas: bumbum clássico, neurótico, preguiçoso, convencional, sexy, repugnante, gorduroso, gentil, extrovertido e estável. Há bumbuns para todos. Mas, como disse o sexólogo pioneiro Havelock Ellis, “Não há parte do corpo humano que não possa ser erógena”. O fetichismo comercial se estende a propagandas, filmes, “out doors”, comerciais, às vezes até grotescos. Se não houvesse fetichismo não existiria a moda.

A sociedade de consumo integrou o fetichismo à estética mental do cidadão pós-industrial. A nova geração “shopping” é especialista no enfeitiçamento erótico por “griffe”. Na praia tem-se o local especial por excelência para tais demonstrações: os indivíduos são reconhecidos pelo bumbum e pela marca dos calções e biquínis. A distinção estética-erótica se faz em função dos tipos de vestuário, modernos fetiches da sociedade atual. Os anúncios de carros, cigarros, eletrodomésticos são comumente associados a fetiches motivacionais para o Homem do século XX.

As partes do corpo, enquanto fetiches, também sofrem variações de época a época, de cultura a cultura. Num instante, como nos hotentotes, tribo africana, o foco sexual está no tamanho das nádegas. Noutro, como na sociedade americana, os grandes bustos. Nos quadros de Modigliani, as obesas matronas eram as preferidas. Na década de 30, a cintura fina era o frenesi do momento. As pernas femininas aumentaram de interesse quando as feministas na década de 60 fizeram a apologia da mini-saia. As mulheres, por seu lado, hoje em dia, mais que nunca, incorporam o valor estético-erótico-fetichista nas suas escolhas. Elas, que na década de 50 olhavam em primeiro lugar para os olhos masculinos, curtem outros atributos físicos como o bumbum, as pernas e o corpo em geral nas suas caçadas e investidas. E quando o fetichismo passa a ser objeto de estudo do distúrbio mental? Quando se torna patológico. No exato instante em que o objeto inanimado (sapato, calcinhas, luvas, meias) ou partes do corpo (cabelos, pés, mãos) deixam de se envolver no ato sexual total e passam a ser partes autônomas na geração da angústia, isto é, sem relação direta com o ato sexual.

Vejamos os dois exemplos. Um homem pede à mulher que use um determinado tipo de vestuário numa aproximação amorosa a fim de obter maior estimulação. Prefere tal corte de cabelo, um tipo de calcinha, uma espécie de brinco. Com isso, sente maior fonte de estimulação e atinge o melhor orgasmo. Tudo bem. Nada de mais. Agora imaginemos um homem que se masturba com o pênis próximo ao sapato ou à calcinha ou ao “soutien” sem nenhum interesse pela parceira. Ou como aquele personagem de Joyce, em Ulisses, chamado Bloom que, após dez anos sem sexo com a esposa, atinge o orgasmo ao carregar calcinhas no bolso do paletó. Nesses casos houve desvio do interesse pelo outro, desvio na relação eu-tu assumindo o sapato, o “soutien” ou a calcinha no primeiro plano, deixando a aproximação humana para trás. Aqui, estamos diante de um desvio da sexualidade. No texto de José de Alencar em a “Pata da Gazela”, uma botina de mulher e depois os pés exerceram enorme fascínio em Horácio. Diz José de Alencar: (...) “Mas a botina achada já não era um artigo de loja, e sim o traste mimoso de alguma beleza, o gentil companheiro de uma moça formosa, de quem ainda guardava a impressão e o perfume”. O interesse específico de fetichismo por botas, sapatos, pés, sandálias, pés suados com aroma característico, recebe o nome de podofilia (e não pedofilia que é outro assunto). Nessas situações, só há interesse pelo pé, só há orgasmo no pé, só ele ou seus adereços proporcionam prazer. E como entender o fetichista? – partamos do princípio de que o desvio fetichista é uma maneira de isolar a mulher, numa interpretação cognitiva afetiva ligada a alguém na infância “alguém amado ou não”, mantendo-a à distância e relacionando-se com o objeto-fetiche, o qual está inconscientemente ligado a alguém na infância, alguém esse amado e ou traumatizante.

Como as culturas primitivas estudadas não apresentam o fetichismo desviante, conclui-se ser um fenômeno surgido na civilização repressora. É na aprendizagem social que se desenvolve o fetiche. A culpa, dado psicológico existente em todos nós, é bem mais poderoso nos fetichistas. Entende-se, assim, que ao isolar a mulher e preferir o sapato, a calcinha, ou o pé, o fetichista se desculpabiliza e mantém a moral repressora inviolável. A hipnose tem sido útil para demonstrar fatos infantis presentes no processo.

Dos exemplos citados, só incluímos homens, pois o fetichismo é quase exclusivamente masculino em sua forma desviante. Quando existe na mulher, vem sempre acompanhado de cleptomania – a mania de roubar objetos sem valor.

O fetichista, no íntimo, é um impotente ou incapaz sexual e tranqüiliza sua insegurança com o objeto inanimado ou com a parte do corpo que o tornará de novo potente. Foge, portanto, à avaliação de seu desempenho sexual. O não tocar a mulher, mas sim o objeto-fetiche, tem muito a ver com o medo do ato sexual.

Maurilton Morais
Enviado por Maurilton Morais em 03/09/2006
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