OS BONS COMPANHEIROS

Na ânsia de ao mesmo tempo agradar a gregos e troianos, entre outras falácias, velhos filósofos argumentavam que “todo fato pode ter duas versões contraditórias, e ambas serem verdadeiras!” Nascia aí a Escola Sofista. Lendo as notícias atuais sobre nosso gigante adormecido, dá para acreditar que os políticos não só reeditam esta filosofia desmoralizante, como a levam às últimas consequências.

Também não conheço outra categoria do conhecimento humano,

onde poderia enquadrar meu antigo colega de serviço, a quem por motivos práticos chamávamos de apenas Deco: abreviação do seu nome, talvez bíblico, quilométrico, e de pronúncia difícil: Melquisedeque! Mais apropriado para xingar mãe de juiz em campo de futebol.

O Deco era um quarentão de corpo atarracado, moreno, bigodes pontudos, cabelos emplastados por brilhantina, e embora casado, insistia em levar uma vida que alguns puristas chamariam de dissoluta. Tinha ele como lema a estranha máxima - naturalmente sofista -, da qual não se corava ao proclamar: Todo homem precisa ter pelo menos um vício! A questão era que meu companheiro extrapolava. Além de fumar igual maria-fumaça, jogava cartas valendo dinheiro, enxugava a “mardita” que nem areia de praia, e, pecado capital, seu decadente Chevrolet Opala podia ser visto por fins de semana inteiros, à sombra das árvores, estacionado no pátio da Boate Moranguinho. Sem intenção de ofender às damas e donzelas - que porventura leiam esta crônica -, seja em Bom Despacho, Carazinho, Lavras, e até Aracaju - boates somente trocam de nomes: por dentro é tudo a mesma gandaia! Para felicidade geral da Nação!

Depois de comparecer com o Deco a tudo quanto fosse padre, mãe-de-santo, psicólogo, pastor, entre outros embusteiros, sem o consolo de que o marido não tivesse recaídas, prevaricando, sua dedicada esposa aparentava-se conformada ao peso da cruz que lhe coubera arrastar pela vida. Da boca pra fora ela dizia “estou pouco rasgando!”; mas na verdade se importava muito com as saídas e, sobretudo, as chegadas madrugadeiras do companheiro boêmio. Macioso, diplomata, como todo freguês de casa de má fama é, para ajeitar as coisas no lar, quando não conseguia estacionar o valente Opalão próximo à calçada - pois o portão da garagem parecia-lhe a cada noite mais estreito -, amansando a patroa o Deco batia à porta fingindo despedir-se de um ilustre companheiro de noitada.

- Obrigado, doutor Roberto! - Até amanhã, padre Vicente! A cada madrugada ele variava suas boas companhias. Já no aconchego da cama de casal, prosseguia com a impostura: “Tive que dar uma demão pro doutor, ajudando ele a levar um doente, quase nas últimas, para a Santa Casa”. Ou “Tava acompanhando o sô vigário, que foi dar a extrema-unção para uma velhinha, coitada, mais pra lá do que pra cá!” Até que por uma destas trapaças da sorte, em certa madrugadinha, meu colega, outra vez sem trazer o carro pra casa, esmurrando a porta fez uma despedida inédita: “- Deus te pague, doutor Nicolau!” A esposa, que não pregara os olhos, aberta uma ventarola da janela, estranhando o novo companheiro do marido, perguntou desconfiada: “- Que doutor Nicolau é este?” Sem se apertar, na maior cara dura, o Deco explicou: “- Uai, o doutor Nicolau, advogado. Depois que lhe ajudei a soltar um figurão da cadeia, ele insistiu pra me trazer em casa!” A esposa, com as medidas derramando, desabafou: “- Que eu saiba, a cadeia tá fechada pra reforma; e o doutor Nicolau, quando era vivo, não dirigia nem carrinho de mão!” E não mais abriu a porta de casa para o marido boêmio.

dilermando cardoso
Enviado por dilermando cardoso em 17/06/2010
Reeditado em 05/09/2010
Código do texto: T2324876