Ela

E pela ladeira ia ela , tão faceira e cheia de encanto em suas ancas ligeiras, descendo o asfalto cheio de buracos; ia ela tão cheia de pose, com sua bolsa pesada, seu sapato encantado e seu mundo desfigurado.

E pisa no mundo como se ele fosse nuvem, como se um mar de rosas de um tom vermelho grená tivesse se instalado em todas as poças de lama e sabe-se lá o que mais descia do morro. Sentia-se assim dona da sua verdade, a verdade que só ela conhecia e quem olhava não via. Seus cabelos com tons de cobre e um preto tão vivo que eu sentia o sol que já havia se repousado, tão cheios de tranças pareciam bordados nordestinos de tal desatino que nem ousava olhar muito. Esvoaçavam como capa de super herói anti-herói; um sorriso tumultuado na boca, não sabia exatamente o que havia no sorriso, era de uma palidez atordoada, tão diferente do brilho de seus olhos, ela toda parecia o sol; que sol é esse que tem um negro sorriso?

E ventava, e sua pele arrepiava, e a alça caia, e desatenta ela nem se mexia... E ia ela com um sutiã branco e uma cara de quem usava sempre um conjunto de renda, ela tinha cara de quem gostava de renda, renda é coisa chic. A talzinha recebera uma cantada de tão péssimo tom, que conseguira sorrir um sol. Porque ela era o sol, seu sorriso era atrevido!

Tão segura de si, ela continua descendo a ladeira.

Malcriado esse vestido que teima de ventar tanto , mostrando tanto encanto quanto qualquer obra de arte colorida. E ela vinha e nem me via. Parou na birosca, pegou uma garrafa de água com gás, bebeu com tanta gana que as gotinhas caiam da sua boca gulosa e desciam gentilmente pela pele como numa camera lenta ( ou era eu que a via assim?) e como de praxe se esparramaram no tecido claro do vestido. Ela se secava e logo pagara o senhora de olhos verdes.

Eu todo dia observava essa vadia, se era vadia eu não sei, mas era a minha vadia, embora nunca estivesse na minha cama , ou em alguma cama que eu estivesse; ela me via e nem queria saber. Eu também nunca tive muita coragem de fazer ela saber, ela é tão ela, que me afeta se um dia ela não for, ela não é linda, mas a desgraçada é um sol. Alguém consegue viver sem um sol ?

O meu sol, descia todo dia no mesmo horário para a sua academia dar aula comunitária pra galera de lá da crista do morro, e eu a observava todo dia como se fosse um ritual divino. Isso deve ser pecado. Também não me importa a moral e os bons costumes, eles não servem.

Mas agora eu decidi, quando ela voltar vou trazer ela pra mim. Vou dar essas coisas tolas que todo mundo diz: casa, comida e roupa lavada; duvido que aquela favelada já teve tudo na mão assim; vai virar dondoca e ainda vai ser muito feliz na cama, modéstia a parte. Só não vai poder sair dos meus cuidados, nunca que eu vou deixar o meu sol clarear outra paisagem... Eles que arrumem outro sol!

Dez horas, já está na hora dela subir a ladeira. Corro pra janela sento no meu lugar de sempre e olho. Luzes acesas, meia dúzia de gato pingado na rua e nada dela passar. Passaram-se vinte minutos que pareciam vinte dias. Eu já estava ficando vermelho de raiva e preocupação, se é que preto fica vermelho, eu não fico vermelho! Dez e meia e nada daquelazinha passar, o que será que aconteceu? Ela é sempre tão pontual... Dez e trinta e cinco, dez e trinta e seis, dez e trinta e nove, dez e cinquenta e oito, onze horas... Diabos! O que será que aconteceu?

Nesses breves minutos minha cabeça girava: será que é uma festa na academia?; Será que ela resolveu dar aquela "esticadinha" com um professor cheio de músculos? Que vadia!; o que será que aquela desgraçada tá aprontando ?, Deve estar dando pra algum por aí, aquele sutiã não me engana, sabia!

Fiquei então confuso e irritado até a hora de pegar no sono , sem perceber, que raiva me deu não perceber o sono. Eu acho que estava com tanta raiva que cai num sono tão profundo que só acordei quase de tarde. E não comi, nem bebi, nem tomei banho. Fiquei lá olhando aquela lá passar e o dia acabou e ela não passou, e eu passei mais 2 dias assim, já estava fedendo e meu corpo precisando de comida.

Não tinha mais sono, esperei a moça de olhos verdes abrir a porta da birosca. Tomei um banho , fiz um café , comi um pão dormido com requeijão. E fui, já sem ânimo perguntar pra fofoqueira, cadê o meu sol...

-Dona, a senhora tem visto aquela moça lá de cima do morro que é assim, assim assado?

- Moço , então o senhor não sabe o que aconteceu?

- Sei não...

E me Batia uma angústia, aquela lá morrera?

- A mãe dela morreu, ela foi morar com o noivo, estão prestes a se casar, ela só morava aqui porque a mãe não queria sair da comunidade. Já estava acostumada nessa vida. Dizem que o noivo dela é bacana, vem aqui com aquele carro prata e espera ela toda noite , no final dessa rua depois da ladeira, e....

Eu virei as costas e fui embora, ela de costas pra mim, fazendo alguma comida, nem percebeu e continuou falando daquele noivo lá que parecia noivo dela, velha fofoqueira! Sabia de tudo.

Nesse dia, nem o sol que queimava fazia algum efeito. E eu começava a pensar como fazer pra sequestrar ela, queria roubar ela de qualquer pessoa que roubasse o meu sol. Depois de tanto estudar o caso como um advogado de defesa, me mudei pra frente da casa dela , não muito na frente pra não dar na cara.No fundo, eu não tive coragem de roubar meu sol, e já sabia todo o seu itinerário, e vivia olhando pela janela ( até mais confortável) da casa, mas eu não ia conseguir, ela brilhava mais do que nunca. Tinha dias que eu nem comia, mas tinha que ver meu sol, agora cheia de roupas de grife e de carro com motorista. Meu sol, eu tenho o meu Sol, Ela era meu Sol, eu não precisava de mais nada.