As latas e a história da minha alfabetização

A aula de leitura era na hora do almoço no momento da sobremesa quando o Klébi trazia para a mesa a redonda lata de coalhada fresquinha.

A coalhada era a sobremesa preparada pelo Klébi e a preferida da família. Logo de madrugadinha ele partia para a mangueira para tirar o leite que seria consumido pelas crianças, e por ele também, que depois viraria coalhada e queijo.

Além da deliciosa coalhada adoçada com pedaços de rapadura, às vezes de amendoim, tinha mais a aula de leitura. A coalhada sempre vinha em uma lata de banha, doce ou biscoito. Eram esses os utensílios que tínhamos na nossa cozinha. E foi nessas latas que aprendi a ler. Lembro-me, perfeitamente, dos sobrenomes Matarazzo, da lata de banha; dos óleos de soja marcas Zillo e Salada. Havia, ainda, as latas em que minha mãe guardava os biscoitos. Em uma das latas eu lia: biscoitos Petybom.

Lembro-me da lata de remédios, essa era de doce e redonda; e a dos documentos era quadrada e cheia de coloridas flores – era aí que meus pais guardavam nossos registros de nascimento.

Assim foi o meu primeiro contato com os textos escritos e os gêneros textuais utilizados pelo meu alfabetizador foram os diferentes rótulos dos nossos utensílios domésticos. E apesar da boa condição de letramento do meu alfabetizador, muitas perguntas que eu lhe fiz ficaram sem respostas.

Certo dia li em um rótulo de uma lata de banha Empresa Ltda e perguntei-lhe o que significava essa expressão. Não recebi resposta satisfatória. Outra vez perguntei-lhe o que significava Sociedade Anônima. E ele apenas respondeu-me que se tratava de uma sociedade.

Depois chegou o vô Pacheco com a cartilha Caminho Suave, era um militar que viera do Rio Grande do Sul para servir ao Exército em Bela Vista; viajava a cavalo pela campanha – assim se dizia das fazendas - e nós o chamávamos de vô. Alguns diziam que ele era um mestre. Minha mãe o chamava de Seu Almerindo e sentavam na varanda de casa para tomarem chimarrão com salsaparrilha. Os dois diziam que era bom para os nervos.

A verdade é que o vô Pacheco contribuiu pouco com a minha alfabetização, entretanto, ensinou às minhas irmãs menores. O Klébi, sim, me ensinou as palavras nos textos dos rótulos.

Tempos depois começou a me ensinar o abecedário, mas se atrapalhou quando lhe perguntei onde estaria o y do Petybom, já que naqueles idos anos 70, o y não constava no alfabeto que ele me ensinava. Outro problema para nós dois foi com a palavra Zillo (o sobrenome do proprietário da fábrica de óleo) que tinha dois eles.

As perguntas que ficaram sem resposta não atrapalharam a aquisição de conhecimentos na minha fase inicial da leitura e da escrita, entretanto, a deliciosa coalhada com rapadura, saboreada em volta da grande mesa da nossa cozinha, enquanto aprendíamos as palavras dos textos lidos por meu pai, isto, sim, faz muita falta.

Vicentina Vasques
Enviado por Vicentina Vasques em 27/06/2010
Código do texto: T2344832
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