O SUSPIRO DO INIMIGO

Final de semana chegando e eu aproveito para ler, de novo, o livro “Suspiro do Inimigo”, em sua primeira parte. Confesso a vocês que me dá muito prazer percorrer as linhas escritas pelo jornalista Mário Gérson. O seu estilo é uma mistura de requintada ordem gramatical com os pressupostos e subentendidos dessa mesma língua.

O livro de contos dá vida, nas páginas, ao cotidiano de pessoas simples que Mário, antes de por no papel, vai desenhando em conversas que tem com os parentes e, também, com os amigos mais próximos.

O conto, que dá título ao livro, é a prova da capacidade de criação do autor. Provido de uma incomum veia escarninha, aliada às translações, e misturada com a fina ironia dos grandes escritores, ele descreve a morte do seu personagem principal, tornando-o o inimigo número um de toda uma sociedade. Fica claro, em determinados trechos da obra, a pena ferina com que ele se refere ao pobre coitado: “Os cachorros, que sempre entravam nos velórios da Capela de Nossa Senhora dos Impossíveis, não quiseram adentrar ao recinto (...). Até os cachorros avisam quando se morre um indecente”. Dá a impressão de que o autor está descrevendo o destino de seus desafetos – se porventura ele os tenha, na vida real –, pois sempre a seguir vem uma reflexão para corroborar essa hipótese: “Elias nem olhou para trás, quando lhe disseram, na porta de entrada, que Teobaldo Barreira havia morrido” (Elias, o outro personagem da história). E, no final do conto, a sua ironia transportada para Elias: “... e, discretamente, escreveu, na tábua do caixão: “Ó Deus, receba este infeliz!”.

Na verdade, a morte é, em todos os contos do livro, o personagem principal. No segundo conto, em o “Nó do Enforcado”, o escritor discorre sobre os caminhos que levam ao além, na trágica trajetória de Antonino – seu personagem humano – ao começar a filosofar sobre seu pai: “Meu pai era sábio, eu não o sou”. A metáfora utilizada pelo autor é a de fazer um contraponto, na relação pai e filho, onde haja, ao mesmo tempo, a admiração e a inveja, numa analogia própria de quem observa muito bem a dicotomia entre amor e ódio.

E a dona morte acompanha o autor nos contos seguintes. Porém, em nenhum momento, o livro se torna tenebroso em sua leitura, nem causador de arrepiamentos por parte de quem o lê. Pelo contrário. As narrativas são reflexivas e mostram, com certo lirismo, a realidade crua de nossos tempos, como em “Gratidão da Alma”, aonde a morte de Antonino – filho que vai embora a busca de seus sonhos e jamais retorna a sua terra – é paga, anos depois, pelos pais, num leito de hospital; ou, então, em “Uma Morte Silenciosa” que descreve a vida dura de uma mulher que vive para servir ao marido boêmio – e exímio jogador de cartas –, e que, como recompensa por ser uma boa esposa, apanha todas as noites. Cansada, ela resolve por fim ao seu martírio e crava-lhe um prego em sua cabeça. A frase final resume bem o seu drama: “Eu o matei para ser feliz”.

E assim, sempre trilhando por enredos que levam, invariavelmente, à passagem da matéria para o espírito, que o autor vai discorrendo sobre o seu universo imaginativo, aquele em que a mente criativa supõe haver uma ligação entre a vida e a morte. Deste modo, em “Sobre as Ondas do Mar”, a morte se faz presente na pesca em alto-mar. A mocinha que espera, todos os dias, a volta do amado que o mar levou, vê, dois anos depois, sua recompensa chegar as areias da praia, em forma de caveira, o que cumpre com a máxima: o mar devolve seus mortos.

Com “Os Gatos de Madame M.”, o livro termina a sua primeira parte, denominada “Das Crônicas dos Comuns”. Neste conto, o autor descreve a vida singela de uma senhora aristocrática que vive enclausurada em sua pequena mansão, em companhia de seus gatos. Gatos de todas as raças. O seu mundo é dividido entre dar de comer aos bichanos e as lembranças do seu marido – morto na Segunda Guerra Mundial. Ao morrer, a velha senhora é acompanhada, em seu trajeto fúnebre, por mais de 100 gatos que, segundo o personagem de nome Nelito, “são mais de duzentos”.

O mais interessante, nas prosas de Mário Gérson, é a sua comedida explanação dos fatos que, para muitos, poderia ser uma ausência discriminativa, mas para o autor é uma perfeita junção entre pensamento e narrativa, enxugando acontecimentos e detalhes. No final, cada conto exprime, em poucas linhas, o conteúdo inteiro de uma boa história de ficção.



 



Raimundo Antonio de Souza Lopes
Enviado por Raimundo Antonio de Souza Lopes em 04/07/2010
Reeditado em 07/12/2011
Código do texto: T2357304
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