Meu Primeiro Assalto

O Mundo é bárbaro, já disse o sábio, indignado e cômico Verissimo. Que também disse que os protestantes fazem melhor capitalistas e empreendedores do que os católicos. Sou protestante, sendo assim, sou um capitalista e empreendedor. Tão empreendedor que aos 21 anos de idade quis montar meu próprio negócio.

A idéia não surgiu por acaso. Já havia sido esboçada desde a minha conversão, que por ter ocorrido no inicio da adolescência, me fez pensar cedo em possuir uma vida próspera e regalada. Assim, aos quatorze anos me vi na busca de me situar como autônomo. E o caminho foi árduo.

Com todo esse histórico de tentativas e fracassos, pensei que o jeito mesmo era me submeter ao tão drástico sistema empregatício. Encontrei uma proposta de carteira assinada em uma Cia de ônibus nacional e permaneci lá por quase dois anos, até minhas crenças de ser um grande empresário voltarem a gritar em meus ouvidos. Pedi demissão!

Com a verba dos tempos e do FGTS partir para o projeto do meu primeiro negócio. Pensei em vender roupas ou em ficar no ramo alimentício, mas como estamos mesmo é na era digital, decidi por montar foi uma Lan House. Um lugar onde as pessoas: crianças, jovens, adultos e terceira idade, pudessem navegar na internet tranquilamente. E eu queria lhes oferecer não apenas o mar, mas também a canoa e os remos para que cada um pudesse chegar onde quisessem, quer fosse no mundo do bate papo através do MSN, ou na transformação de suas vidas em um reallyt show do Orkut, ou simplesmente as pesquisas educativas no sites de busca. Como bom estudante do curso de pedagogia pensei logo na inclusão social.

Assim, fui parar em um bairro periférico com a minha lan house. E não foi só por questões financeiras - embora tenham influenciado muito, e como! – mas sim, por que desejava inseri aquela população em situação de vulnerabilidade no universo das TIC’s, ainda que fosse só por meio de computadores velhos e de segunda (ou terceira?) mão, os únicos que consegui comprar dando todas as minhas economias e ainda me endividando por completo.

Nunca critiquei minha escolha do local. Para mim, sempre estive convicto de que aquele era o tipo de público que queria atingir, mesmo que o bairro já estivesse sido estigmatizado como um bairro pobre e extremamente violento. Sabia disso. E sabia também que estaria sujeito a um assalto a qualquer momento, só nunca havia ensaiado como seria minha reação caso ou quando isso acontecesse. Descobri quase dois meses depois da inauguração.

No princípio tudo ocorreu normalmente. Muitos caras mal encarados entravam a todo o momento na house e fiz questão de dedicar toda atenção a eles. Tirava todas suas dúvidas e ainda deixava que permanecessem na máquina por mais tempo e de quando em vez ainda lhes oferecia desconto! Em pouco tempo tornei-me conhecido de muitos supostos futuros assaltantes. Mas não de todos.

Certa noite, todas as máquinas estavam ocupadas e haviam alguns jovens sentados esperando ansiosos e torcendo que alguém enjoasse e largasse mão do vício para ocuparem seus lugares em frente ao PC. Enquanto isso, eu estava atrás do balcão executando meu hobby: assistir Rick Vallen no You Tube, quando um tipo estranho se aproximou. Não percebi que ele havia entrado com olhos suspeitos que vagaram por todos os lados até me fitarem. Isso só fiquei sabendo depois quando os meus clientes aterrorizados com o que eu fiz me contaram.

Ele encostou-se ao balcão. Muito prestativo e, como já disse, dedicado especialmente aos fregueses que não precisavam de esforços para desenhar no rosto feições de marginais estilos Cidade de Deus, logo me prontifiquei com o meu “fala brother!” – que aprendi com alguns dos meus clientes.

Permaneci encostado na cadeira mantendo certa distância. Mas isso, por puro reflexo, afinal até o momento não havia me passado nada pela cabeça a não ser o obvio: ele era mais um que desejaria navegar pela net. Tanto que, por nunca ter visto tal sujeito no meu estabelecimento, antes mesmo dele dizer o que diria a segui já fui logo indagando:

- Quer abrir um nick, moral? – Se ele entendeu ou não, nunca saberei, pois, ignorando a minha pergunta, falou em um tom como de sussurro:

- Quem é o dono daqui?

Confesso que não pensei duas vezes antes de responder, talvez pelo orgulho do momento, mas, sobretudo, pela minha inocência. Ele perguntou e eu prontamente respondi feliz da vida com meu próprio negocio:

- O dono sou eu! Era alguma coisa?

- Era sim, claro! É você mesmo o dono daqui?

- Sou eu sim, manda aí!

Como eu sou estúpido não é? Abri mão da oportunidade de me redimir do meu erro mesmo percebendo que o cara pesava drasticamente o olhar em mim.

- Olha amigo, desculpa está te atrapalhando no seu local de trabalho, mas é que... – reconheci aquele jeito de falar. Sabe quando na rua alguém te aborda com uma cara de coitado moribundo e te pedi uma ajuda para o leite Ninho dos filhos, ou para o remédio da mãe, ou para a passagem para consegui trabalho na cidade mais próxima? Pois é, foi desse jeito que ele falou. Eu sabia que ele ia pedi. E pediu. – Eu queria uma colaboração sua aí.

- Cara – antecipei-me antes de ele revelar o que queria de fato – eu vou lhe ser sincero, eu aqui não tenho nada e...

- Não, amigo, você não me entendeu – fui interrompido e não imaginei que devia continuar calado – eu não to pedindo nada seu não...

- Eu sei, mas... – tentei imitá-lo, porém não deu certo, ele me venceu de novo.

- Deixa eu falar porra, – Aqui ele aumentou a voz e reduziu imediatamente pra dizer o resto da frase, talvez não querendo chamar a atenção de ninguém – tem dois dias que eu sair da cadeia e acabei de espancar um filho da puta ali agora. – vi todos os computadores olharem para ele, notei que toda a house se tornara um olho só e fitava um único ponto, eu fazia parte desse ponto - Na boa cara eu me segurei pra não matar aquele otário.

- Sim! E daí o quê que você quer que eu faça?

Ninguém teclou nesse momento! E afirmo sem medo de errar que até então nunca havia visto tanto silêncio naquele local. Nem mesmo os que jogavam ContraStryk ou GTA deram um tiro se quer!

Não sei o que me passou na cabeça. Ignorei a fisionomia do malandro, o tom de sua voz e o discurso ameaçador que fizera a pouco e retornei a ouvir minha música enquanto ele me respondia.

- Só tô querendo uma ajuda pra vazar daqui antes que a polícia pinte na área.

O silêncio e os olhares prosseguiam. Dava até para ouvir os sons de aviso quando alguém pede atenção da outra no Messenger.

- E você quer o quê? – Perguntei mais uma vez.

- Só to querendo que você não me obrigue a fazer nada de errado. Na boa, eu não tô querendo nada que é seu, é só uma ajuda e tudo tranquilo.

Estranhei o modo pacato que ele disse isso e me surpreendi também que pela segunda vez ele afirmara que não queria nada meu. Bateu até mesmo uma pontada de tristeza no meu peito: será que este infeliz não entendeu, caramba, que sou eu o dono daqui? Fiquei tão chateado com o descaso do individuo que repeti minha ultima fala pausadamente.

- E você quer o quê?

Outro erro meu. Por ser tão prolixo acabei acarretando uma onda de fúria no marginal à minha frente. A tranquilidade tornou-se repentinamente revolta.

- Meu irmão, cê ta tirando onda com a minha cara é? Se você não me dá logo qualquer porra aí eu vou ter que fazer que nem eu fiz com o mané lá em baixo, e eu to armado porra! Se você continuar me tirando...

- Beleza, entendi. – a house deu um suspiro de alívio e manteve o olhar vivo. – Mas, acontece que... como aqui é um bairro muito perigoso, e sempre aparece gente pra... cê sabe! então, o dinheiro a gente sempre leva para depositar toda tarde, sendo assim...

- Para de me enrolar, meu irmão, e adianta logo esse negócio aí! – Ele me interrompeu.

Foi aqui que pude observar o medo dos meus clientes. Enquanto eu falava todos olhavam para mim, quando era a vez do dito assaltante, todos imediatamente disfarçavam e olhavam para a tela do computador. Continuei minha explicação.

- Pois é isso que eu quero te dizer, eu não tenho nada aqui, só tenho algum dinheiro que recebi das últimas máquinas e que é pra passar troco. – É claro que eu estava mentindo, há dois dias não fazia depósito e sempre guardava o dinheiro na penúltima gaveta, debaixo de um porta cd de plástico, sem falar que a primeira gaveta onde ficavam as moedas estava com todo o montante daquele dia. - Então vou ver o que tenho aqui, e quanto eu posso te arrumar, beleza?

- Ta valendo!

Minha calma era estranha até mesmo para mim, e ainda cantando puxei a gaveta das moedas deixando o espaço somente para a minha mão e apanhei uma nota de dois reais, isso mesmo, dois reais apenas. Entreguei para ele que arrancou da minha mão de súbito e esboçou no rosto um leve sorriso de vitória, colocou a mão sob a camisa, como se segurasse uma arma e disse:

- Você evitou uma desgraça aqui!

Balancei a cabeça em gesto afirmativo e dei o meu sorriso vendo-o correr porta fora. Pensei que tudo tinha acabado, quando ouvir um grito intenso ecoar por todo estabelecimento:

- Tiago, filho da puta! Você quer matar a gente é?

Eram meus clientes deixando escapulir a raiva do medo que eu os tinha feito sofrer durante aquele tenso instante!