Meu Primeiro Assalto II

“Eu sou um nada. Um lixo. Um verme. Uma nulidade. Eu me esgueiro em meio a montes de refugo longe dos grupos humanos.” Levantei a cabeça para ver por onde estava caminhando e o vi pela primeira vez. A princípio não dei importância e retomei a leitura do penúltimo capítulo do livro O carrasco do amor do Dr. Irvin. Estava ainda no parágrafo inicial quando ele me abordou.

Sempre tive o costume de andar lendo. Para mim esta é uma mania que encurta a distância e torna o tempo mais prazeroso, além de me deixar cada vez mais próximo da conclusão de qualquer obra literária. A maneira é simples: primeiro se verifica o percurso, o que há no caminho nos, pelo menos, cem metros a seguir. Nesta etapa se observa curvas, buracos, árvores, postes de iluminação, orelhões, carros estacionados e tudo o mais que pode lhe impedir de ir em frente. Depois é só firmar os olhos no livro e andar procurando iluminação sem se deixar desfiar do trajeto antes elaborado.

Assim degustei muitos livros bons em minha vida e idealizei muitas histórias também. No entanto esse é um vicio perigoso, ainda mais quando se está voltando para casa quase meia noite por ruas pouco movimentadas e frequentemente escuras. Estava vindo da casa da minha namorada, depois de termos chegado da faculdade e aproveitado um pequeno tempo para nós. Trazia nas mãos o caderno, algumas literaturas especificas para elaboração do tcc e por fim o livro que eu desejava terminar a quase um mês aberto no capítulo Monogamia terapêutica.

Ele chegou como quem me conhecia. Perguntou se eu estava vindo da igreja, suponho que por causa da calça, e respondi, fechando o livro e reparando à minha volta, que não e sim da faculdade. A rua estava deserta, salvo o carro que recolhe o lixo e uns três garis parado à nossa frente. Continuei andando, porém aumentando os passos. Não o conhecia.

- E o seu irmão? – Perguntou encostando-se ao meu lado, acompanhando meu andar.

- Que irmão?

- O seu irmão? Ele continua lá ainda?

Sempre sofri de um grave problema de memória. Para que eu possa lembrar-me da fisionomia de alguém e até mesmo do seu nome é necessário, no mínimo, cinco encontros onde eu chame constantemente e olhando nos olhos, ainda assim isso não é garantia de recordação nenhuma. São inúmeros conhecidos que passam por mim implorando um aceno ou um sorriso e que graças a minha amnésia eu os ignoro sem maldade. Por causa disso criei outro hábito, o de falar com todo mundo na rua que me olha por mais de dez segundos. Não foram poucos os micos que paguei cumprimentando gente que, pelas suas reações, com certeza nunca havia me visto na vida. E foi por esse motivo que, mesmo cismado, permiti que a conversa com o desconhecido prosseguisse.

- Quem? Paulinho? Ah, ele ta lá ainda. Continua morando no mesmo lugar.

Sabia que era um equivoco oferecer aquelas informações, mas estava numa tremenda dúvida, afinal ainda existia outro problema: graças ao meu jeito Tiago Mota de ser, tem muita gente que me conhece e recordam meu nome sem eu nunca ter conversado com elas uma única vez se quer. Resolvi arriscar uma pergunta:

- Você conhece meu irmão, Paulinho?

Ele foi ágio na resposta:

- Com certeza, morava ali perto de vocês, na rua de baixo. Paulinho tá trabalhando de quê agora?

Havíamos passado pelo caminhão do lixo. Agora descíamos a ladeira mal iluminada e deserta já chegando na BR, ainda mais solitária. Dessa vez eu pressentia que algo estava para acontecer. O cenário era estranho, o horário inapropriado, o clima tenso e os personagens perfeitos como se retirados de um conto do Machado de Assis. Tive vontade de correr, mas lembrei-me de como em alguns dos meus pesadelos diante de algum perigo desejo escapar, mas, minhas pernas travam e não correspondem às minhas ordens gerando enorme medo e pânico.

- Da mesma coisa de sempre. Ele nunca mudou de profissão. – Decidi parar de dar mais detalhes.

A conversa continuou no mesmo ritmo, quando, porém, chegamos à BR e se confirmou a ausência de alguma alma viva ele fez o que eu já imaginava, no entanto de forma estranhamente sútil.

- Cara tem como você me emprestar seu celular aí, só para dá um toque.

- Meu celular não está fazendo ligação não. - Expliquei tentando manter a calma.

- Tem problema não, eu vou ligar a cobrar. É só um toque. Eu não vou te roubar.

Que alívio quando ele disse isso, pena que eu não acreditei. Também não estava mentindo, o celular realmente não estava ligando.

- Eu sei, véi, mas é que nem a cobrar tá dando pra fazer ligação.

- Cara eu não vou te roubar não, eu só tô precisando dá um toque. Eu vou te entregar seu telefone.

- É, mas você não me entendeu. Acontece que o meu celular não está fazendo ligação. Deixe lhe explicar: o meu chip é a conta, besteira de jovens, e já tem um bocado meses que eu não pago nada. Aí primeiro eles bloquearam para ligar e agora nem receber eu estou recebendo. Em fim, não tem como você usá-lo! - Foi o mais claro que eu conseguir ser, mas não adiantou.

- Então deixa eu tentar. Só tentar dá um toque e pronto.

- Cara você não entendeu – estava perdendo a paciência e aumentando o medo – não tem como você usar o aparelho não. Não está funcionando.

Assim ficamos: ele insistindo e eu explicando. Fiz de tudo para acelerar ainda mais as minhas passadas. Havia um trailer de lanches logo à frente que eu sabia estar movimentado e era por esse motivo a minha esperança de encontrar abrigo. No entanto meus planos foram frustrados. Bem próximo ao fundo do trailer quando comecei a adiantar-me ele pulou na minha frente e praticamente agarrou-me pelo pescoço, sem nem mesmo me tocar.

- Então me dá dois reais aí cara. – Pediu se aproximando

- Não tenho não, véi! – Afastei um pouco

- Eu tô te pedindo dois reais, me dá dois reais aí cara!

- Eu to falando que não tenho!

Eu estava mentindo agora. Na minha carteira havia uma nota de dez reais e ainda tinha algumas moedas nos bolsos da calça. Ele continuou se aproximando e nessa hora esbravejou.

- Cara qual é o seu problema hein?

O tom de voz mudou. Seu rosto ficou bem mais rígido e mal encarado. Ele fez um gesto de sacar uma arma sob camisa, gesto que eu já conhecia de perto, então, recuei. Sabia que ele não portava arma nenhuma, que aquilo era blefe, mas me intimidei muito mais pelo seu olhar demoníaco do que com a ameaça de um tiro.

- Filho da puta, me dá logo essa porra aí, porra! Antes que eu quebre sua cara aqui mesmo me’rmão.

Dentro de mim sentia raiva. Pensei em como outras pessoas reagiriam. Alguns dos meus amigos não tinham chegado nem até aquele ponto, já tinham partido pra cima do marginal e brigariam sério. Outros já teriam corrido ou entregado o celular e o dinheiro. Senti desejo de esmurrar aquele filho da mãe como nunca senti vontade antes, mas, como nunca briguei na minha vida descartei a ideia, além do mais o cara era bem mais velho e mais forte que eu.

A mistura de pensamento me fez rir. Balancei a cabeça repetindo a frase: “só podia ser comigo mesmo”,“só podia ser comigo mesmo”. Respirei fundo e o fitei nos olhos enquanto ele prosseguia seu discurso:

- Eu não tenho medo de policia não cara, se eu for preso no dia que eu sair pode ter certeza que mato qualquer filho da puta onde tiver. Eu já fui preso, tá ligado, mas agora eu não como reguee de nada não. Só não venha tirar onda com minha cara não, mané!

Não sei por que eles têm mania de sempre imaginar que somos nós quem estamos tirando onda com eles. Continuei com meu sorriso de leve e com o meu balançar de cabeça, “só podia ser comigo mesmo”.

- Tá vendo aquele passeio ali? – Apontou para a esquina, um lugar escuro e completamente longe dos olhares de quem estivesse no trailer – Vai andando pra lá e senta. Agora disfarça pra ninguém perceber nada.

Disfarça/ninguém... eu rir disso! Se houvesse alguém ali eu já tinha dado um jeito de fugir, mas nessas horas ninguém é ninguém mesmo, e disfarçar pra quê e pra quem, afinal? Obedeci a contragosto, e novamente pensando no que estava fazendo e como meus amigos reagiriam.

- Cadê sua carteira? Abri aí.

Peguei a carteira e abri lentamente. Ele deu uma olha e exigiu minha única nota.

- Me dá esses dez reais aí que eu vou ali e troco, eu só quero dois reais mesmo.

Eu já estava bastante estressado, segurei o dinheiro e entreguei a ele fazendo uma cara de desprezo.

- Precisa não, cara, toma o dinheiro e pronto. Leva tudo, tá tranquilo.

Pra ser sincero não esperava dele um pouco mais de educação:

- Não cara, eu não quero te roubar não. Só to precisando de dois reais mesmo. Se você quiser eu troco pra você. Deixe olhar o outro lado da carteira aí.

- O quê?

- Aquele outro espaço, deixa ver se não tem mais nada lá.

Abri a carteira e fiz questão de tirar todos os pápeis e extratos que tinha, revistando cada abertura e dizendo não ter mais nada. Quando imaginei que ele já tinha acabado, mais uma surpresa.

- E nos bolsos? Tem nada não?

Não entendi! O cara que tinha acabado de dizer que ia trocar o dinheiro para tirar somente a quantia que queria, pede para verificar os meus bolsos? Estava aumentando minha raiva. Pensei no tempo que estava perdendo e que com certeza minha namorada já havia ligado para casa para saber se eu havia chegado bem e deixado minha família preocupada imaginando horrores por causa da violência presente em nossa cidade.

Mostrei todos os bolsos, retirando tudo que trazia neles. Duas moedas de vinte e cinco centavos e duas balas de chocolate com recheio de menta. O assaltante pediu tudo, até minhas balas! E voltou a falar, desta vez, com muito mais calma.

- Cara, preste atenção no que eu vou te dizer. Pelo que eu percebi, você é um garoto muito bom. E hoje em dia muita gente boa tem morrido por pouca coisa. Por exemplo, eu te pedi o celular e você me enrolou um bocado, falar em celular me dá ele aí também, - olhei nos olhos dele com toda fúria e entreguei o celular – pois então, depois te pedi dois reais e você com o dinheiro na mão ficou dizendo que não tinha. Você me deixou com muita raiva, cara, se fosse outro já tinha de dado um tiro sem pensar duas vezes, eu to armado sabia? – balancei a cabeça confirmando, mesmo sabendo que era mentira. – Dá próxima vez quando alguém te parar e pedi alguma coisa você entrega logo, mano. Entendeu? Poxa, você é estudante, é um cara educado, direito, vai perder a vida por bestagens?

Não estava aguentando mais. “Só podia ser comigo mesmo”. Acabo de ser assaltado, perco meu celular, meu dinheiro e minhas balas e o marginal ainda senta do meu lado para me dá sermão e conselhos sobre a vida. Ironicamente por um instante tive até vontade de evangelizá-lo.

Levantei-me para ir embora, dei um sorriso tosco e agradeci. Isso mesmo, agradeci! É claro que por dentro estava matando ele aos poucos, mas agradeci e comecei a andar. Ele me chamou novamente. Virei-me.

- Cê não vai por aí não! Cê mora onde?

- O quê? Eu moro... – bem, não ia cair na besteira de apontar para a direção onde morava, então parei.

- Então vamos por essa rua, aí você entra na próxima. É só por garantia, pra você não vacilar e chamar os homis, entendeu?

- Não vou chamar ninguém. Já te entreguei tudo.

- Pois é, mas mesmo assim vamos por aqui.

Eu estava no meu bairro, qualquer rua que eu entrasse chegaria em minha casa. Mas a ideia de seguir aquele marginal me soou como mais problema. Estupro não! Seria o cúmulo, depois de tudo que já tinha passado ainda correr o risco de ser violentado e perder minha dignidade, seria realmente o fim. Aí eu pediria pra morrer. Para não contrariar, depois daquele longo conselho, resolvi ir pela determinada rua.

No caminho ele continuou elogiando o fato de eu ser estudante, reafirmou o quanto o mundo estava perigoso e que eu deveria ter mais preocupação com o futuro. Como já estava chegando numa rua próximo a minha casa, tomei coragem e falei:

- Cara, já que você já levou tudo que eu tinha, até meu celular e como eu sei que você não vai me devolver se eu pedi, então, será que tem como você tirar pelo menos meu chip.

- Você quer só o chip?

- Você não vai dar o celular né? É só o chip mesmo, que tá com todos os meus contatos do trabalho, entendeu?

Ele encarou-me. Pegou o celular, tirou a tampa do fundo e a bateria e me passou o aparelho.

- Toma, tira aí o seu chip, véi!

Retirei o chip e devolvi o telefone. Ele guardou e curvou uma esquina oposta a minha. Segui para casa com um aglomerado de pensamentos martelando minha cabeça, mas no final das contas resumi todos em um único: só podia ser comigo mesmo!

Tiago Mota