A Máquina de Overlock

―Isaac, como é que tu faz uma coisa destas? Tu deves ter ódio de mulheres. E, como são estas que costuram, tu deves ter feito uma máquina para castigá-las. Claro que você fez esta máquina com todos aqueles buracos, com aquelas curvas escondidas, peças minúsculas e a dificuldade para enfiar as linhas para testar a inteligência das mulheres.

―Minha querida, eu sou um cientista. E nós adoramos fazer coisas que nos tornem únicos. Ciência é assim: difícil.

―Mas você, como um cientista, deveria saber que a ciência deve estar a serviço do homem, para facilitar a vida das pessoas. Você criou esta máquina tão complicada que não é qualquer mulher que pode usá-la. Só se for cientista e louca como vocês todos o são.

Marília olhava aquele senhor sério, de cabelos fartos, na janela que lhe falava com doçura, deu-se conta de que ele seria incapaz de fazer um mal mesmo que para uma mulher que ele odiasse. Sentiu carinho por ele. Até o admirou. Ele tão afetuoso, criou uma máquina para facilitar a vida das pobres mulheres, na costura dos uniformes de guerra, dos enormes panos para cobrirem as camas. Costuravam as barras das vastas cortinas que cobriam as paredes altas das casas, e os casacões que os abrigavam no inverno frio. Só com a força de uma máquina se consegue costurar. Aproximou-se da janela levantou o vidro e, pretendia lhe dar um abraço quando percebeu que não havia ninguém na janela.

Decidira ser independente. Depois de transformar metros e metros de tecidos em calças e camisas masculinas, de passar os dias pregando botões e fazendo casas nos casacos masculinos, decidiu que gosta mesmo é de costurar para mulheres. São sedas leves, cortes delicados com arremates que lhe enchem de emoção. Comprou três máquinas. Uma de costura reta. Uma galoneira e uma de overloque. A máquina de costura reta é uma daquelas que qualquer criança sabe manusear, a galonera também é simples, mas a de overloque é uma máquina pequena, que pesa mais que um botijão de gás de cozinha e o pior: manter suas linhas enfiadas. São três linhas – que, para enfiá-las precisa-se de mestrado na Sourbone. Cada fio é enfiado em quatro lugares, passando e voltando pela mesma peça, retornando por dentro com a ajuda de uma pinça de ponta comprida que lhe dá acesso aos locais por onde a linha deve passar. Sobre a mesa minúscula da máquina há uma estrutura com varais por onde as linhas precisam passar para mantê-las esticadas e assim garantir a qualidade do ponto. Qualquer brisa que entre na janela onde a máquina estiver perto enrosca as pernas dos fios, impossibilitando a costura. Se uma delas arrebenta inicia toda a saga de enfiar em todos aqueles buracos de difícil cesso. Marília está mais estressada do que se tivesse ficado na fábrica ouvindo aquele bando de miseráveis queixarem-se de seus maridos bêbados.

Olha para a janela na esperança de encontrar Isaac, quem sabe se recostaria em seu ombro e lhe falaria de sua solidão, de seu desânimo diante da dificuldade que encontra nestas coisas, quando Marta - sua irmã que está de visita na cidade - chega da rua. Intrigada, Marta lhe pergunta com quem Marília fala com vós tão alterada, e do que fala.

Marília ergue-se da cadeira com a intenção de iniciar um discurso explicando-lhe o quão cruel é Isaac Merrit Singer que fez aquela máquina de overloque para provar que as mulheres não são inteligentes, que quem deve dominar o mundo são os homens, que elas só servem mesmo é para serem mandadas, mas dá-se conta de que as máquinas Singer foram apresentadas ao mercado em 1850, que já não temos guerras no Brasil há mais de meio século.

Envergonhada, diz para a irmã que estava falando sozinha. Que ela esqueça o que escutou, e volta os olhos ao manual de instruções.

Almeri Souza
Enviado por Almeri Souza em 17/07/2010
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