ANTES TARDE DO QUE NUNCA

“Tem dias que a gente se sente, como quem partiu ou morreu...” Se na canção Roda-Viva, ao grande Chico Buarque é permitido especular sobre uma recaída existencial, por que seria negado a mim, logo num destes momentos em que tudo parece na contramão do destino? Diziam os antigos, que para se haver na vida todo homem precisa cumprir três coisas: plantar uma árvore, escrever um livro e gerar um filho! Ao começar pela opção menos trabalhosa (se você pensou que fosse o filho... dançou), fui bem prático plantando um pé de manga doce-de-leite, que todo final do ano enche de perfume o terreiro e de frutos deliciosos o pessoal aqui de casa. Até um livrinho cometi a temeridade de publicar. Felizmente, num laivo de bom senso, antes que fosse apedrejado por leitores - a quem doei alguns exemplares - fui a uma siderúrgica local e numa fornalha a mil graus o livreto virou fumaça, instantaneamente, graças a Deus! Quanto ao filho, por ser a parte mais interessante do fazer-se homem, tive três, que é melhor pecar por excesso do que por omissão!

Ainda assim, o funcionário da Prefeitura continuava a me questionar com desconfiança, como se eu não estivesse batendo bem da cachola. “- Você tem certeza de que pretende comprar um ‘lote’ no cemitério, e para uso próprio?” “- Sim!” Respondi monossilábico. "- Vem muita gente aqui, querendo comprar a mesma coisa, mas para outros! Você é o primeiro freguês-usuário.” Brincou ele. Para que não me tomem por mal-humorado, aproveitei a deixa. “- Eu já posso morrer tranqüilo: vi o Pelé jogando futebol; o Senna correndo na Fórmula-Um; assisti um show do Bob Dylan, no Morumbi; namorei a Miss...” Vangloriava-me do meu passado, enumerando motivos ou razões que me credenciassem - a passar sem culpas e traumas - desta para uma melhor, quando entrou na repartição o meu amigo Marcelino. Apesar de cinquentão, casadíssimo, tendo até netos, ele é cismado a levar a vida numa boa. Sempre alinhado, bate de carrão do ano, e com aquela pinta de galã da terceira-idade, não esconde seu chamego por rabos-de-saia. Depois de jurar (em vão, pois conheço a figura) ter sido a despedida, me contou sua última aventura, num final de festa no Parque de Exposição, quando resolveu dar uma voltinha extra com uma loura turbinada, só chegando em casa já o dia claro; para bater de testa com a esposa e a sogra - ambas expelindo lavras de fogo pelas ventas -, pois naquele dia seriam padrinhos de um casamento arrojado, em Uberaba, no Triângulo Mineiro.

Logo no vai-e-vem da Serra da Saudade, entre Bom Despacho e Campos Altos, passando marchas, o Marcelino esbarrou num pé de sapato de mulher, aparecido comprometedoramente embaixo dos pedais do carro. “- Isto só pode ser coisa da loura!” foi tudo em que conseguiu pensar, no momento de aperto. Com jeitinho, puxou a prova do crime, e dando a desculpa de que seu cinto de segurança se prendera por fora da porta, abriu a dita cuja, e despistado atirou na rodovia o inconveniente pé de sapato. Como estavam atrasados e a viagem era longa, só foi parar na porta da igreja. Aí o bicho pegou. É que a sogra, tal como a filha passando a noite em claro, à espera do genro namorador, para um cochilo no banco traseiro antes tirara os sapatos... Ao descer, achando apenas um pé, virou um dragão! Adivinha pudico leitor, se na hora do sufoco, o Marcelino não havia jogado o pisante da velha na estrada? Para que a casa não caísse, humilde e solidário, levou a distinta senhora à primeira loja que encontrou aberta, ao final pagando a conta sem exclamar um ai de contrariedade! Quando o funcionário da Prefeitura me apresentou o formulário para a compra do lote na ‘Chácara do Vigário’ - agradeci polidamente e já de carona com o Marcelinho, despedi-me. “- Deixa pra depois. Ainda tenho muita coisa boa pra fazer nesta vida!”

dilermando cardoso
Enviado por dilermando cardoso em 18/07/2010
Reeditado em 19/07/2010
Código do texto: T2385926