Poeira, caos e um blues

O vento sopra e parece cantar com tristeza, é quase um lamento. Meados de julho, com cara e clima de agosto.

O tempo está seco, a poeira que paira no ar é agitada com sucessivos pés de vento. A terra vermelha adentra pelas frestas e deixa as donas de casa compulsivas por limpeza.

Quem anda de moto tem que baixar a viseira para proteger os olhos das partículas, e ficar esperto, pois a molecada está soltando pipa e um cerol bem feito pode decepar a cabeça de um pobre desavisado.

É um mês triste, com tardes avermelhadas e problemas respiratórios. Um jornal de circulação nacional divulgou números que não causam orgulho a nenhum cidadão. Manchete no caderno regional, mostrando que os 23 homicídios ocorridos na cidade desde julho passado foram todos relacionados ao tráfico de drogas.

As disputas por poder tornam-se mais sangrentas. Polícia despreparada, cidadãos acuados. Um toque de recolher que não pode ser obedecido por quem trabalha no período noturno.

Os locais não são mais escolhidos previamente, agora a escolha é aleatória. Pode ocorrer em qualquer lugar, seja uma lanchonete, uma sorveteria, ou mesmo no meio da rua.

Nada está dando certo nessa cidadela. O incrível Renato Teixeira veio cantar com sua banda e o som pifou. Um dos maiores ícones do folk brasileiro levou uma rasteira das instalações sonoras e foi obrigado a parar o show duas vezes.

O cinema foi passar um filme e o mesmo rodou durante meia hora de cabeça para baixo.

Dizem que é a zica que precede a entrada do mês do cão danado.

Meu filho vai nascer em agosto. Está chegando a hora, estou feliz, até radiante e não sou supersticioso; mas bem que 'esse povo' podia parar de ficar dando tiro para todos os lados e deixar apenas que a gente siga vivendo em paz.

Cada morte é um blues, tocado lento, cantado entre lágrimas. Da minha casa dá pra ouvir o desespero nos velórios. A mãe é a que mais chora, agarrada ao caixão.

Uns fumam maconha num canto, bebem vinho chapinha e exibem discretamente uns para os outros as armas carregadas. Quando o cortejo passa, ouve-se passos, uma espécie de percussão para os gemidos e soluços.

E eu acabo chorando junto com aquela mãe. Fico sentado no sofá, olhando para a barriga onde meu filho cresce, feliz por mais uma dádiva, mas triste por ter que mostrar ao rebento para onde está caminhando nossa sociedade...

BORGHA
Enviado por BORGHA em 21/07/2010
Reeditado em 30/07/2010
Código do texto: T2390624
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