UM HOMEM HUMANO
Meu avô materno, o velho Guilhermino do Engenho, foi um homem que viveu à frente do seu tempo. Ele mesmo confirmava isto, com uma pontinha de amargura na voz, já beirando os noventa anos, sempre que alguém lhe elogiava a saúde e a lucidez: “- Pena, que só agora o mundo esteja ficando bom de se viver!”
Privilegiado por uma inteligência acima da média, praticamente se alfabetizou sozinho, em páginas de folhetins, nestes brabos sertões mineiros. E, no entanto, falava um português quase castiço, diferenciado pela pronúncia acentuada da letra erre - invariavelmente resvalando a língua pelo céu da boca. Desde os tempos de rapaz (ao pé da letra e da época: mancebo!) sua figura esguia, podendo-se dizer altaneira, fizera corações de moçoilas e donzelas bater descompassadamente. O velho tinha uma bela imagem (e, ainda por cima, era jeitoso com as palavras...) Contava, para nosso espanto, que muitas vezes, nos bailes de então, elas fugiam dele como o Diabo foge da Cruz! É que nunca aprendera dançar, daí lhes pisado doloridamente nos pés... Astucioso, como não havia arrasta pé sem sanfona, comprou uma para que “elas” estivessem ao seu alcance! Porém, foi até o instrumento rasgar o fole, sem que ele tivesse aprendido a dar o primeiro toque! (Talvez esteja aí, uma das explicações porque não toco nem sino de igreja!).
Era um amante da vida. De tudo queria saber o por quê? Adulto, por curiosidade, tornou-se agrimensor prático, sendo seus serviços requisitados para medição de vários latifúndios, existentes aqui, à data. Gostava de lembrar, orgulhoso, a contenda travada com os antigos moradores do Distrito do Engenho do Ribeiro (Município de Bom Despacho, nestas Minas Gerais), que turrões não aceitavam a largura que ele “desperdiçando chão” traçara para as ruas do lugar. Já idoso, gabava-se: “Hoje, as ruas do Engenho são traçadas e mais largas que as do Bom Despacho, por conta da minha teimosia!”
Para ocupar a mente vivaz tinha o hábito de caminhar contando os passos, cronometrando o tempo, estabelecendo distâncias e horários entre os mais diversos pontos de Bom Despacho. Morador de um velho casarão, ao início da Rua Floriano Peixoto, certa vez, seguramente havendo esgotado outros assuntos, virou-se para meu pai (seu genro), lascando uma das suas perguntas típicas: “Ô, Rurick, onde ocê acha que é a metade do caminho, entre o meu portão e a Santa Casa?” Meu pai, que foi sempre um homem prático e franco, sem tempo para minúcias extravagantes, deu o primeiro palpite que lhe veio à cabeça. “Ara, sô Guilhermino, deve ser ali onde a Rua Alferes Tavares cruza com a Avenida São Vicente!” “É lá!” Concordou o sogro, ressalvando. “Mas no meio-fio, do lado direito, de quem desce a rua.” Pois detalhista ao extremo, dizia de si, todo presunçoso: “Conversa minha não dá retoque!”
A fé religiosa não era arrefecida, conquanto sua discordância com Moisés que - pelo arraigado sentimento de culpa judeu - gravara os Mandamentos iniciados por tantos “Nãos”! Numa roda de homens, em sua casa, quando alguns haviam se excedido nos aperitivos - de que ele fazia uso moderado -, contando vantagens de machos, sem que as esposas, entretidas em conversas na cozinha ouvissem, vovô confidenciou que ao longo da vida conhecera, na acepção bíblica da palavra, trinta e três mulheres! Como animado pelo álcool, alguém duvidou daquele número cabalístico, mais do que das suas puladas de cerca, jocoso o velho justificou-se: “Uai, se Jesus Cristo vivendo trinta e três anos deu-se por satisfeito...?” Desvalido cronista, eu vou dizer mais o quê?