MEU PAI E MEU HERÓI

O herói da minha vida poderia ter sido o reverendo Luther King, feito mártir por sua pregação da igualdade racial - “Eu tenho um sonho!”. Ou o cosmonauta soviético Yuri Gagarin, primeiro humano a viajar pelo espaço sideral- “A terra é azul!”. Porém, meu herói foi um homem do povo: meu pai! Chamava-se Rurick Cardoso. Estranho nome de origem russa, para um homem nascido e criado no sertão destas Minas, todavia, Gerais! Primogênito de quatro filhos, quando nasci ele contava trinta e sete anos. Tão logo peguei um tamanho, em seu carro de praça - Fordinho - (atual táxi) me levava nas corridas, quase como um troféu, ou um amuleto!

Este homem singular, que pelas agruras da vida freqüentou uma escolinha de roça apenas até o segundo ano, era obstinado, perspicaz, leal, e ponderado. Por exemplo: quando os filhos excediam nas peraltices, em casa, jamais levantou a mão contra qualquer de nós. Colocava-nos, isto sim - de castigo -, sentados numa cadeira ora em absoluto silêncio, ora lendo um livro de escola, por meia-hora, em voz alta. E bastava. Somos-lhe gratos por este tratamento - já naquele tempo!

Ao concluir a Escola Primária fiquei em dúvida: eu seria papa, marinheiro ou aviador? Como é sabido que ao mar navio balança demais, provocando enjôos; e aviões caem, irremediavelmente; optei pela carreira religiosa, num seminário perto daqui. Na primeira ida, como éramos vários garotos de Bom Despacho que para lá seguíamos em estudos, meu 'velho' decidiu levar todo mundo (com malas, sonhos, canastras de pertences...) em seu caminhão - na volta trazendo uma carga de pedras para fazer cal. Ocorreu que certo colega deixou seu violão, atrás do banco da cabine... Ao voltar pra casa, deparando com a esposa em prantos pela ausência do filho, papai que desde o casamento abandonara serenatas e boemias, tomou do instrumento e por dias seguidos, à tardinha, com sua bela voz entoava canções alegres assim aliviando dores próprias e alheias.

Anos depois, trilhando caminhos que me levassem a Roma, me mudaria para São Paulo, ali concluindo a segunda etapa dos meus preparativos como futuro servo de Deus. Também na primeira ida à Terra da Garoa, de novo meu pai fez questão de me acompanhar. Parece que precisava daquela viagem mais do que eu. No regresso, por muito tempo seu assunto predileto era contar em detalhes o passeio: a magnífica Catedral da Sé, a travessia pelo Viaduto do Chá, o altíssimoTerraço Itália, o ladrão tentando roubar-lhe o relógio na rodoviária (porque mineiro não perde trem, e ônibus também não!). Porém, a tempo, Deus que tudo vê, viu que eu não servia para o seu ministério...

Por falta de vocação religiosa retornei à terra natal. Só aqui tomei pé das dificuldades financeiras, penúria mesmo, enfrentadas pelo 'velho' - tendo inclusive que esgueirar-se no armazém, até outros fregueses saírem, daí pedindo fiado ao propritário, mesmo sem haver pago a caderneta do mês anterior; que depois saldou! Quando fui aprovado em concurso para o Banco do Brasil, ele ficou mais exultante que eu. Só então compreendi: eu era sua esperança! Contudo nunca dissemos um ao outro ”Eu te amo filho!” e “Eu te amo pai!” Entre homens estas delicadezas não caíam bem. Ah, do que são capazes as palavras...

Vítima de câncer devastador, pressentindo a hora derradeira, pediu a todos que se retirassem do quarto: a ninguém permitiu assistir sua agonia. Então morando em BH, não estive ali para contrariá-lo, uma última vez. Porém ficou-me a lição: sozinho é mais fácil suportar a dor da própria partida. Deus certamente o acolheu em sua misericórdia. Que a mim, também, um dia.

dilermando cardoso
Enviado por dilermando cardoso em 04/08/2010
Reeditado em 06/11/2011
Código do texto: T2417626