LOUCOS POR CARROS (ou enlouquecendo com eles)

Dizem que brasileiro é louco por carro. Realmente dá pra perceber somente pelos números da industria nacional, a quantidade de montadoras, modelos e produção. Os caminhões, denominados cegonhas passam em filas pelas rodovias repletos de carros novos. Outro sintoma da paixão do brasileiro por carros está no congestionamento nas cidades, um enxame de insetos mecânicos zunindo e poluindo as ruas.

Se é grande o número de carros novos, muito maior é o de carros velhos. Cada consumidor que adquire um modelo novo mais uma unidade usada fica disponível para aqueles de menor poder de compra. Eu me enquadro na segunda categoria com muito orgulho. Orgulho mesmo porque eu sou povão e abomino tudo o que indica ostentação pura e simples e a empáfia daqueles que entram num carro novo e acham que são donos do mundo (Despeito? Dor de cotovelo? Bom senso? Opinião? Não sei, estou analisando ainda.) Mais do que orgulho, satisfação pois as emoções de quem possui carro usado são muito mais intensas do que aqueles que tem carros novos. Da mesma forma aquele churrasco popular com churrasqueira de tambor de freio, com copos descartáveis e roda de samba é muito mais divertido que o churrasco comportado e frívolo com garçons e música do Jorge Vercílio dos grã-finos.

Para começar quem tem carro velho acaba obrigatoriamente entendendo um pouco de mecânica. Se cada torcedor é um técnico no país do futebol, cada dono de carro velho é um também um pouco mecânico. Termos como homo cinética, retentor, setor de direção, garfo da caixa de marcha, béndix do arranque, relê do farol, correia dentada, e outros tornam-se familiares. Sem falar na famigerada rebimboca da parafuzeta.

Outra relação da qual os donos de carros novos não desfrutam é o relacionamento estreito e íntimo que se tem com o mecânico da família. Isso mesmo, mecânico da família, aquele cara que conhece seu carro a fundo, seus defeitos, suas manhas, etc. É o médico do seu carro. E como quem conhece o carro conhece dono, ele também te conhece a fundo, ouve suas lamúrias pacientemente, te oferece o ombro amigo, conhece suas limitações financeiras e está sempre disposto a dar um jeitinho: dividir em três vezes, usar aquela peça mais barata do paralelo, recondicionada ou até do desmanche. É uma relação tão estreita que comumente acontecem grandes amizades, o mecânico vira compadre, divide a casa da praia no verão (levando as ferramentas, lógico), e sai junto com as famílias para a pizzaria. É também mecânico da família porque passa de pai para filhos. Cuida do carro do coroa, do filho mais velho, da filha, do sobrinho, do primo, etc. É uma corrente, a chamada propaganda boca a boca.

Já os donos de carro novo levam o veículo para a revisão e no máximo conhecem o recepcionista que faz a ficha no computador e some com o carro lá para dentro. Enquanto o coitado fica ali, numa sala com ar condicionado lendo um jornal, tomando cafezinho e assistindo tv tela plana de 29 polegadas. Um porre.

Quem tem carro usado é atendido pelo dono, aquele cara que te olha nos olhos, te cumprimenta com a mão suja de graxa, os cantos da unha preta e te entrega o cartão com a digital impressa em óleo queimado. Seu carro entra para oficina, quase sempre pequena, e você entra junto, transita livremente pelo ressinto sentindo o cheiro de carro velho e olhando retrato de mulher pelada nas folhinhas da parede. Escuta piadas dos mecânicos e as histórias das conquistas e bebedeiras do último fim de semana, e até assobia junto com eles para a empregadinha da casa ao lado que vai colocar o lixo. E ali do lado um radinho de pilha que um dia já foi cinza (atualmente é preto) colado com fita crepe, dá as últimas notícias do plantão de polícia. O repórter dá a manchete: “marido esfaqueia mulher no morro do papagaio”, e um mecânico diz: “aumenta aí que é meu vizinho, ajudei a socorrer a mulher.”

Tudo isso é alimentado pela assiduidade com que o dono do carro velho freqüenta a oficina. Troca amortecedor, troca o óleo, é um vazamento aqui, uma válvula batendo ali, uma bomba d’água pifada acolá, um silencioso furado mais embaixo, etc. Quando o carro fica muito tempo sem problema, o dono começa a desconfiar. E quando ele volta na oficina o mecânico lamenta: “Cê ta sumido cumpadre, tava com saudade”.

Não demoram inventar uma espécie de plano de saúde para carro. As empresas já têm os contratos de manutenção com as oficinas. Bastaria estendê-los aos particulares, fornecendo uma espécie de carnê para pagamentos mensais.

Outra vantagem do mecânico de família é que ele é uma mão na roda na hora de comprar ou vender um carro. Quando for vender pode dizer ao comprador que o carro é de primeira e quem cuida dele é o Graxinha (o nome desse caras é uma atração à parte: Maisena, Varrido, Ferrinho, Zé Ruela, Passarinho, Chulé, Graxinha, Espoleta, etc. Haja criatividade) Tudo que precisa conserta na hora, pode perguntar. Não sem antes ligar para o Graxinha e combinar tudo: “olha, tô vendendo o Chevette, se alguém te perguntar, enche a bola do carango, ok?” E na hora de comprar e pintar uma insegurança pode dizer: “tudo bem, eu gostei mas antes quero mostrar para o mecânico de confiança”.

Quem tem carro novo jamais saberá o que é dar tranco pra pegar, passar marcha sem embreagem quando ela pifa, identificar um ruído na suspensão, parar o carro na caixa quando o freio falta, e outras manhas que tornam o motorista de carro velho muito mais piloto que o de carro novo. O carro novo anda quase sozinho, não bate nada, não tem a menor graça.

Mas falando sério, dizem que o carro é outra família. Eu concordo. Não que dediquemos ao carro o mesmo amor que à família, embora eu conheça quem o faça, mas pela despesa que o danado consome. O carro velho evidentemente dá muito gasto com oficina. Em contra partida o carro novo é absurdamente caro, impostos pesados, exige seguro total e é mais visado pelos ladrões. O que é lamentável é que tudo isso é provocado pela distorção na distribuição de renda injusta que graceja em nosso querido país, onde por exemplo, quem produz o carro dificilmente pode comprá-lo. Assim como o funcionário do frigorífico come pouca carne. O carro não tem culpa de nada, é apenas um equipamento indispensável além símbolo de conquista e objeto de desejo de todos. Por isso mesmo é um dos parâmetros mais usado.

Por tudo isso não sei mais o que é certo dizer, se o brasileiro é louco por carros, ou se enlouquece por causa deles. Acho que os dois.

João Eduardo
Enviado por João Eduardo em 17/09/2006
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