Dentro de mim 
 
Ler é meu único vício. Comecei cedo e nunca mais parei. Na mesinha de cabeceira ou debaixo da cama tem sempre um livro. Meus preferidos como relaxantes são os livros com textos curtos, que não preciso abandonar ao meio antes de adormecer. Poemas. Crônicas, contos. Qualquer história não muito longa para que eu possa lê-la até o fim, antes que Morfeu se instale em minha cama. Ontem não foi diferente. Só que ontem o remédio fez efeito contrário. Dormi mal e ao acordar continuei com a alma inquieta.

Estou lendo Paul Bowles. O livro, Um Episódio Distante. Doze contos e uma novela. Ainda não sei qual é a novela. E nem sei se saberia reconhecê-la.

Paul Bowles era natural dos Estados Unidos da América do Norte. Morreu em Tanger, Marrocos, onde viveu grande parte de sua vida, em 1999. Seu livro mais famoso é o Céu que nos protege – que foi adaptado para o cinema.

Foi o terceiro conto que me deixou assim, desqualificada para passar o dia. Páginas de Cold Point. Mas acho que isso aconteceu em um crescendo. Passei pelo primeiro e pelo segundo como se não tivessem me atingido. Mas quando cheguei a Cold Point desmoronei.

Não consigo ainda compreender porque o conto mexeu tanto comigo. Nem mesmo ter certeza se foi o conto que me fez mergulhar nessa tristeza que aparenta infinda. Mas que sei que não é, porque me conheço e conheço algumas coisas da vida em geral. Tudo passa. Tudo é efêmero a caminho da eternidade. Que ainda não sei o que é. Pode ser Tudo como eu anseio, mas não será Tudo só porque anseio. Mas pode  também ser Nada.

A vida transcorre como tem que transcorrer. As coisas acontecem ao meu redor e nem são coisas tristes. A Sexta Mostra Cultural já está em seu sexto dia. As apresentações foram boas, mas está faltando alguma coisa. Está faltando alguma coisa dentro de mim. Eu não estou me envolvendo como deveria, é como se eu não tivesse nada a ver com ela. Os problemas, resolvo, mas como se resolvesse problemas que não me dizem respeito.Estou fora, não estou dentro. Não consigo nem me irritar com as coisas que deveriam me irritar. Não sinto vontade de me comunicar com ninguém. Quero apenas seguir a vida sem incômodo.

Ela foi embora ontem, a nossa menina. Dentro de poucos dias tomará o avião que a levará para um novo ciclo, um novo círculo. Uma partida anunciada, uma partida desejada. Um prêmio, a realização de um sonho. Mas sonho de quem? Teria ela coragem de não realizar esse sonhos de todos se também não fosse o seu? Como frustrar a expectativa que ela julga ser de todos? Como fazê-la compreender que o verdadeiro amor é incondicional? Mensagens enviadas ao longo da vida não podem ser canceladas.

Cold Point. Um lugar perdido, fora da civilização. Um homem querendo se afastar de tudo que é ruim e se instalar em um mundo ainda bem distante das transformações. Um homem e seu filho e uma relação plácida entre ambos, uma relação que inclui o amor, mas não a comunicação. O ver na superfície. Apenas. A incapacidade de reagir quando a verdade aparece. Quando o que é mostra ser algo bem diferente. Tudo o que foi construído dentro do limite do respeito à vida do outro se desmorona quando se torna impossível ultrapassar esse limite. Os dilemas se multiplicam e as perguntas implícitas ardem como chicotadas na alma. O não saber o que fazer nem o nome que é possível dar ao que foi feito. Omissão. Não-aceitação. Respeito. Autoconhecimento e conhecimento verdadeiro, não sobre o outro, mas sobre a vida. Qual a verdadeira motivação que move os nossos atos? Para que perguntar se ninguém quer saber a resposta.
 
E a vida corre como um rio em direção ao mar, ora tranqüila, ora tormentosa, mas sempre na mesma direção... e acho que tanto eu como ele, o narrador do conto, apenas queremos seguir a vida sem incômodo, sem nenhuma chateação.