Crónicas do Brasil: O Instituto Cultural Brasil Galiza ou a escadaria para o Céu.

Lembro o dia que comecei a construir uma escaleira para o Céu. Na eira de Baixo. De pedra. Sete anos e umas chancas novas, feitas polo pai, a estrear na lama que esse dia fazia de cimento. Na tarde consegui dar por terminado o primeiro degrau e a noite sonhei-a cheia de gente subindo e descendo, compreendi que era demasiado grande para conseguir fazer eu sozinha, e imagino que parei por aí.

Hoje veio-se-me à cabeça e continuo a me perguntar se a começara porque queria ver com os meus olhos se os Deuses eram realmente como os homens diziam que eram, eu nunca gostei do senhor abade; ou talvez fosse apenas uma metáfora pola que fugir de uma escola em língua que eu não percebia e que começara, havia apenas uns meses, a me roubar de meu mundo de lendas, uma escola da que eu me escapava para ir lá ao monte onde andasse o meu pai... as tábuas do chão com seus buraquinhos ao jeito, ajudavam deixando cair o lápis para a corte... lembro quando a mestra não me permitiu mais ir sozinha procura-lo... Ou talvez simplesmente começara essa escada porque sempre gostei de tentar o que outros julgaram impossível.

Hoje sei que o único verdadeiramente impossível é aquilo que não se tenta. Foi também hoje que decidi continuar a escada para Céu, só que talvez hoje deva escolher outros materiais mais ajeitados aos tempos e as idades, hoje não tenho sete, tenho quarenta e sete, e o meu mundo passou por vários séculos nesse tempo. Claro que hoje, sabendo que a Terra é redonda, eu não colocaria o Céu acima de nós; hoje eu colocá-lo-ia ao lado, colocá-lo-ia na própria Terra. Hoje se continuar aquela escada de pedra tem, por força, que passar polo Brasil...

O Brasil, sim. Em São Paulo o templo, no Rio as imagens sacras dos seus montes com formas tão humanizadas, e em Santa Catarina a ilha que nós, os filhos e filhas de Breogám, sonhamos nos aguardar no Além. A ilha da magia à que chegamos no dia 30 de março, a ilha das pedras e das bruxas que se negaram a obedecer ao diabo.

Por nós, como membros da Comitiva Oficial dos Colóquios da Lusofonia, que se iam celebrar em Florianópolis nos dias seguintes, aguardavam os organizadores locais: a Cristina, o Augusto, a Rosa, e também a Ana Maria. Mas por nós, como membros do Instituto Cultural Brasil Galiza (ICBG) aguardavam a Silmara, nossa presidente no Brasil, e o Joám Evans, membro do ICBG e Delegado Oficial da Academia Galega da Língua Portuguesa no Brasil. Os abraços, que logo descobrimos que nessa parte do mundo nascem espontaneamente, foram muitos e bem sentidos. Do aeroporto fomos diretamente a almoçar a um restaurante do que não consigo lembrar o nome, mas que se poderia ter chamado: ‘O paraíso das carnes’, impossível esquecer.

Essa mesma tarde, sem descansar, e mesmo sem tirar a roupa das malas, a Isabel e eu reunimo-nos com a Silmara e o Joám para falar dos últimos preparativos dos atos do dia a seguir no que íamos celebrar a inauguração do ICBG. Falamos, consertamos, combinamos, e ainda nos restou vontade e tempo para um passeio pola praia e para a primeira caipirinha no Brasil...

No dia 31, bem cedinho, porque o trânsito em Santa Catarina madruga demais, acompanhadas polo Joám e a Silmara, fomos para o Instituto Federal de Santa Catarina, lugar onde iam ter lugar os atos inaugurais do nosso instituto. Quando chegamos já lá andava a gente a trabalhar... As cadeiras, para umas 600 pessoas, já foram distribuídas no centro de uma enorme sala circular, situada no coração do edifício. Três grandes portas dão acesso a esta sala; o lateral esquerdo estava reservado para a música, e o direito mostrava uma exposição de poemas na que a poesia do Brasil se misturava com a da Galiza; mais de uma dúzia de poetas contemporâneos galegos faziam parte da exposição. Ao fundo estava a mesa dos oradores. A Sra. Reitora do IF-SC Consuelo Sielki, o Sr. Pró-reitor de Extensão e Ralações Externas do IF-SC Marcelo Carlos da Silva, o Sr. Diretor Geral do Campus Florianópolis Carlos Ernani, o Dr. Maurício Lehmkuhl, vice-presidente da Sociedade dos Poetas e Advogados de Santa Catarina, o Sr. Delegado da AGLP no Brasil Joám Evans, as Sras. Presidentes do ICBG Silmara Annunciato e Concha Rousia, A Sra. Isabel Rei da AGLP, e as Srs. Professoras Tânia e Cláudia do IF-SC. Detrás dos oradores duas enormes bandeiras, salientando as nossas cores do Brasil e da Galiza, testemunhas daquele evento de irmandade... Verde, azul, e amarelo sobre branco que integrarão, de hoje em diante, as ondas do ICBG.

À partida a música com a Coral e Orquestra do IF-SC dirigidos polo Professor Ireneu, o hino do Brasil, que todos no Instituto sentimos nosso, no encerramento o hino galego, que todos cantamos também, nosso, de todos e todas. Pelo meio os discursos, as emoções e a poesia (Rosalia, Celso Emílio, Aviles de Taramancos, Guerra da Cal...) da mão da guitarra, e a seguir o doce chorinho do Portal do Choro. Dos discursos salientar o que sobreviverá sempre na memória... a irmandade, o desejo de mútuo conhecimento e reconhecimento, a saudade pola distância que afasta o que se quer junto... Os estudantes permaneceram atentíssimos vivendo aquele momento que sabem nunca se passará; porque aquele dia passou para sempre ficar, aquele era o primeiro degrau da escada que vai entrançar as nossas realidades de hoje em diante. No final os parabéns, a troca de prendas e de cartões, os abraços, os desejos de re-encontro que se antecipam à ausência...

E no final a festa, a comida, a mesa grande, a conversa descomprimida, as fotos informais, os risos de contento, o encontro de todos com todos, mesmo que nem todos puderam assistir a esse almoço, íntimo e singelo. E depois a inevitável despedida que deixa assomar já a saudade nos olhos... Nós, a delegação galega, íamos permanecer na Ilha de Santa Catarina mais alguns dias para assistir aos Colóquios da Lusofonia, ora a nossa agenda não nos permitia programar nenhum outro encontro com nossas queridas e queridos novos irmãos... Reconheço que doeu, ainda dói, pois aquilo que dói no coração grava-se numa memória sacra e indestrutível, mas é esta uma dor que não manca...

Durante uns dias, tanto a Isabel como eu, sonhamos com poder fabricar tempo e ir junto dos nossos do Instituto, mas foi este apenas um sonho, um sonho que nos ajudou a sentir mais leviana a realidade, uma realidade que era intensa e era também outra irmandade... Era a primeira vez que os Colóquios da Lusofonia saltaram ao outro lado do Atlântico, desde os Açores, esse outro Céu do que bem podia vir uma das três mechas para esta escada trançada que andamos a fazer... Nem a Silmara nem eu poderemos nunca esquecer que foi na Ilha de São Miguel, ante a Cachoeira da Achada, onde se assinou o nosso primeiro Protocolo de Aliança Poética, ante tão honrosas testemunhas como os Professores Bechara e Malaca, o Presidente dos Colóquios, Chrys Chystello, o representante do Governo de Santa Catarina, o querido amigo Edson Machado, e outros professores participantes naquele Colóquio Açoriano de 2009.

Foi no fim de nossa estadia na Ilha, depois das palestras nas Universidades e Faculdades, depois de nossas visitas pola ilha, das entrevistas em jornais e televisões, que Silmara nos reservava a mais bela das surpresas... O sábado, justo o dia de despedida da ilha da magia, Silmara nos resgatou de nosso relógio no que se gastaram as horas todas havia dias e nos levou a um lugar onde não se media o tempo... Porque nas ondas da música do maravilhoso grupo ‘Portal do Choro’, o tempo não passa, e fica suspenso, como as melodias que retêm o passado ao tempo que nos transportam ao futuro sonhado, porque o futuro sempre é sonhado. Mas, contudo, a noite chegou, e com Silmara e os amigos do Instituto de Politica Linguística (IPOL) fomos para a beira do mar para nosso último jantar na ilha... Uma noite de indescritível beleza e proveito.

O dia a seguir começamos a desandar o caminho de volta... Quando me achava descendo as escadas do avião que nos tinha passeado a noite toda polo Céu fora acima do Atlântico, reparei em que eu não vinha toda comigo, e senti o muito de mim que me faltava, mesmo sem podê-lo colocar em palavras... Ou talvez o coloquei, mas no imaginário, no mesmo que estavam já os versos escritos na areia da praia do Ribeirão... Comigo trazia o ‘My Californian Friends’ do Vasco Pereira da Costa, escritor homenageado nestes Colóquios da Lusofonia, no que achei, para além da poesia que me acompanhou a caminho de Santiago, um provérbio índio que diz que a alma não teria arco-íris se o coração não tivesse lágrimas, e bendisse as minhas.