Assassinato
Subiu as escadas trêmulo e a passos largos e ávidos, bateu na porta com punhos enérgicos e violentos e de maneira assustadoramente intensa. Estava bêbado, mas a angustia em seus olhos revelava um estranho desespero.
- Maria! Maria!
Urrou enquanto esmurrava a porta.
- Maria!
Este último grito ecoou tão alto que acordara não somente sua esposa que dormia esparramada no sofá, mas também, a vizinha do sobrado. Maria sempre teve um sono pesado, era só fechar os olhos que era tida como morta. Havia dias que nem sacolejadas, nem tapas naquele rosto redondo e cheio, nem copos e jarras de água despertavam a mulher de seu descanso profundo.
Ainda atormentada pelos gritos correu à porta e a abriu num repente. Zé caiu nos seus braços e pôs-se a chorar e a soluçar uma frase única e intraduzível que Maria só conseguiu distinguir depois de desviar-se do bafo alcoólico e focar-se nos balbucios cuspidos por ele.
- Eu sou um assassino Maria. Eu sou um assassino!
Estavam casados há mais de trinta anos, Maria conhecia seu marido como a si mesma e tinha certeza que aquele homem berrando em seus braços era incapaz de cometer qualquer delito.
Agarrou-o pelos braços, deu-lhe duas sacudidas brutas interrompendo-o no meio do seu agouro.
- Pelo amor de Deus, Zé! Você ficou maluco, homem de Deus? Que diabo de assassino coisa nenhuma, Zé. Homem do céu, você bebeu de mais, Zé!
- Eu sou assassino, Maria. Eu matei ele, eu matei, Maria. – Zé voltou-se a agarrar em Maria, ainda chorando.
- Cala essa boca Zé! Que matou o quê homem.
- Matei Maria, com minhas próprias mãos... matei, eu matei!
A mulher intrigou-se. A bebida do seu esposo não era coisa nova, ela já estava habituada há anos com a embriagues de Zé, sabia identificar cada fase de inebriamento e a mentira nunca foi um estágio. Além do mais, aquele desespero soou-lhe muito sincero. Arrastou o companheiro até o sofá e o fez sentar a força. Enquanto ele cantarolava sua auto-acusação ela iniciou o interrogatório na busca de explicações.
- Zé, para de chorar homem e me conta essa história, pelo amor de Deus.
- Eu matei ele Maria.
- Crê-em-Deus-Pai homem, isso você já falou. Quem que você matou Zé?
- Eu sei lá o nome dele Maria! Tu também faz cada pergunta mulher, eu só sei que você conhece.
A esposa levou as mãos à cabeça enquanto a boca se escancarava em forma de O.
- Zé do céu, quem foi que você matou homem? – Perguntou tapando a boca com uma das mãos e os olhos com a outra.
- Já disse que não sei o nome mulher! Eu só sei que eu matei ele Maria.
O desespero de seu marido começou a lhe penetrar por debaixo das unhas de Maria ao ponto que ela sacudiu as mãos como se secando o esmalte quando se acabar de passar. Onde isso vai parar meu Deus, pensou ela.
- Homem, me conta pelo menos como foi que você fez isso.
- Com o facão mulher. Ele veio pra cima de mim e na raiva eu rodei o facão e cortei o pescoço dele.
- Ai meu Deus! – Maria pulou e ergueu as mãos – Você arrancou a cabeça dele Zé?
- Com uma facãozada só! – Zé falava com as mãos – O traste caiu no meu pé, Maria. A cabeça prum lado e o corpo pro outro.
- Cruz Credo homem – a mulher desatou a chorar – pra quê essa violência toda, homem de Deus? Onde já se viu cortar o pescoço e separar a cabeça do corpo, isso é coisa de monstro Zé.
O homem deitou-se no sofá e sufocou a cara entre as almofadas. Os ombros sacudia-se em soluços, só se ouvia os gemidos.
- Eu sou um monstro! Eu sou monstro Maria!
Zé era um senhor de meia idade, nascido e criado em meio rural, não tinha outra ocupação senão os afazeres de uma pequena roça que mantinha e cuidava sozinho não muito distante dali. Sua única companhia em dias de trabalho era a danada da pinga como ele mesmo chamava. Sua esposa, no entanto, cuidava da casa e os filhos, um casal, moravam com seus pares em bairros separados.
- Me diga Zé, o que foi que ele te fez?
- Já disse, voou em cima de mim
- Do nada Zé? – Maria coçava a cabeça – Me diga o que ele fez homem.
- Ele começou a gritar Maria, depois começou a zombar da minha cara.
- Como assim meu Deus?
- Começou a me cercar e me chamar de corno, onde já se viu Maria, me chamar de corno, mulher. Aí a última vez que ele veio pra cima eu não agüentei e cortei o pescoço dele. Eu não devia ter feito isso, meu Deus.
- Eu não devia mesmo. – Ela arregalou os olhos. Lembrou de algo que o Zé havia dito – Espera ai Zé, você disse que eu conheço ele?
- Conhece mulher, eu só não sei o nome.
- Oh, meu Jesus! Quem será? Mas Zé, o que nós vamos fazer agora?
- Eu sei lá mulher, eu acho que vou me matar, Maria.
- Credo Zé, não fala besteira homem. Onde você botou o corpo?
- Eu enterrei perto do córrego.
- Nós vamos até lá. Eu preciso saber quem é.
Maria ligou para o filho e a filha, já era tarde da noite, não tinha costume de perturbá-los tal horário, mas o assunto requeria tal urgência. Desabafou ao telefone disse que o seu marido, o pai deles, havia matado alguém e precisava de todos, até mesmo do genro e da nora.
Alheios a personalidade facínora do pai, filho e filha chegaram em pouquíssimo tempo, ela e o marido primeiro, ele e a esposa depois. Ao chegarem, a mãe contou-lhes tudo o que ouvira a pouco, e depois de tanto desespero, resolveram esperar o dia clarear para ir à busca do cadáver.
Ninguém dormiu na casa e antes mesmo de raiar o dia já chegavam com a camionete do pai próximo ao córrego, local indicado por Zé de ser o túmulo improvisado.
Estacionaram.
Todos desceram. Zé ainda não havia se recuperado das fortes doses que tomara antes e principalmente depois do ocorrido. Mesmo assim, indicou o local.
- Foi ali, eu enterrei o corpo perto da cabeça.
- Aí meu Jesus, isso é maldade de mais, eu não sei se tenho coragem de ver não. – Falou a mãe.
- Eu tenho certeza que não tenho coragem. – Completou a filha.
- E eu também não! – Confirmou a nora.
- E você cunhado, tem coragem? – Indagou o filho ao marido da irmã.
- Cabeça longe do corpo? Deus me livre, vai você cara – bufou o genro.
- Só se você for primeiro – incutiu o filho.
Enquanto eles deliberavam quem seria o primeiro a s verificar os restos mortais, Zé se dirigiu até a improvisada cova e começou cavá-la.
Neste instante, aproximou-se da família acuada, dona Déia, moradora do outro lado do córrego que em todo despertar matinal vinha lavar suas louças naquelas águas. Curiosa com o que via não tardou em perguntar:
- O que vocês estão fazendo por aqui tão cedo en?
A língua de Maria coçou:
- Aconteceu uma tragédia mulher!
- Mãe! Interrompeu o filho.
Mesmo assim a mãe prosseguiu:
- O Zé cometeu um assassinato e enterrou o corpo bem ali – apontou com o queixo o local onde o marido estava ajoelhado e arranhando a terra com as próprias mãos.
- Meu Jesus! E quem foi?
- Ele não conhece, mas disse que a gente conhece. Só que a gente tá com medo de ver – Maria aproximou-se de dona Déia e sussurrou – Ele arrancou a cabeça do infeliz.
- Meu Jesus! Eu vou lá ver, talvez eu conheça.
- E você tem coragem mulher? –Perguntou a filha.
- Claro! – Respondeu a velha já correndo na direção póstuma.
Ao parar nas costas de Zé pode vê-lo arrancando da terra a cabeça sem vida. Quando dona Déia viu, soltou um grito e correu na direção do córrego praguejando:
- Assassino! Ele matou meu Juvenal. Juvenal, ele matou meu Juvenal, assassino!
Atravessou aos pulos as águas rasas e continuou a correria ladeira acima.
- Assassino! Você matou meu Juvenal.
Quando a família viu aquilo todos se entreolharam em uníssono indagaram:
- Juvenal?
Como se confirmando uns aos outros, correram todos à cova. Ao pararem não tiveram dúvidas. Zé agora segurava, ainda chorando, a cabeça e o corpo de Juvenal. Todos levantaram as mãos aos céus e gargalham aliviados.
Ninguém podia imaginar que o assassinado não passava do papagaio da vizinha.