"Programa de índio"

Eu nunca compreendi porque se diz “programa de índio” para uma situação, um passeio inusitado, diferente. Será que os descendentes do Velho Mundo acreditam que tupis, os guaranis, os bororo, os tupinambás gostam dessas coisas tão incomuns? Na realidade, eu não sei. Mas acabou ficando corriqueiro que, especialmente os jovens, se referiram aos primeiros habitantes da terra brasilis quando um evento diferente ou até estranho acontece. Hoje dizemos que expressões dessa natureza não são politicamente corretas. Mas que coisa chata que é isso! Pode-se brincar sem nenhuma maldade, nenhum menosprezo, afinal existe coisa melhor do que fazer um genuíno “programa de índio”? Para mim eles são irresistíveis, como fazer supermercado em outra cidade e procurar doces e pães da região nas prateleiras, ler um bom livro às margens do rio Tijucas num sábado à tarde e ficar com as pernas cheias de mordidos de pernilongos, fazer piquenique mesmo sem sol e com vento, ir à praia no inverno só pra ficar vendo o mar sem ninguém na frente, viajar alguns quilômetros só para comer coxinha com coca num boteco com mesa de fórmica e com uma televisão pendurada para assistir jogo da segunda divisão. Assistir, na Rede Vida, jogo entre Muzambinho Futebol Clube e Atlético de Piraporinha, tudo regado a tubaína gelada e uma bacia de plástico cheia de pipoca e torcendo: “vai, vai”... e quando a bola bate na trave, sai involuntariamente um “ú ú ú ú ú”. Viajar algumas horas para chegar à festa do queijo e mel e não comprar o queijo colonial, até porque eu gosto mesmo é da Muzzarela. Enfrentar outras tantas horas, subir lindíssimas montanhas, poder contemplá-las de cima, só para chegar a São Bonifácio e comprar, na casa de produtos coloniais, a manteiga recém batida, as bolachinhas feitas numa fábrica muito interessante no meio de uma estrada de terra batida, um bom naco de bacon, a linguicinha, etc e tal.

Programa de índio é assim, cheio das invenções, quem sabe algum mistério, algum suspense, observação e encanto; portanto nada de errado colocarmos os nativos no meio da jogada.

Então fomos para mais um programa de índio. Sábado à tarde, meu marido e eu resolvemos tomar café com leite com pão de queijo em São Pedro de Alcântara.

São Pedro é um município que faz parte da grande Florianópolis, distante pouco mais de 20 minutos da capital dos catarinenses. Primeira colônia alemã do Estado, fundada em 1829, sendo a terra uma doação do imperador D. Pedro I para fins de colonização. E os colonos foram chegando, sofrendo as doenças tropicais, enfrentando os inúmeros problemas para resolverem a fome, as infinitas dificuldades de comunicação, as saudades da distante pátria. Fizeram história e em grande estilo. As festas comemorativas da colonização são celebradas com harmonia, cores e muita, muita emoção. A colônia é simpática, simplíssima, de poucos recursos. Foi a partir dali que os alemães dos primeiros tempos começaram a migrar para Blumenau, Gaspar, Ilhota, Santo Amaro da Imperatriz, Caldas da Imperatriz, Águas Mornas, Rancho Queimado e outras regiões à procura de trabalho, pois a terra não era fértil. E o viver era complicadíssimo.

Voltemos ao café com leite, sim, claro. Já em São Pedro, paramos o carro na porta de uma padaria, para nós desconhecida, mas com cara de bons amigos. Nas vitrines os bem elaborados doces e bolos convidavam para o deleite. Na minha vez, perguntei à atendente: “tem café? Dada a afirmativa da sorridente moça do balcão, emendei: “Está quente?” Ela respondeu que havia acabado de passar.

- “ Então coloca os pães de queijo num saquinho para mim, por favor, e nós vamos até o balcão tomar o café com leite”.

Eu imaginava que seria mais uma inocente aventura, alguma coisa inventada apenas para a distração de um sábado de frio sem grandes atrativos. Mas a situação foi ficando esdrúxula.

A simpática atendente colocou dois copinhos de café e já ia, decididamente, colocando o leite frio direto da caixinha.

- “Ô bem, peraí, você não vai esquentar o leite?”

- “Ah, é para esquentar?”

- “Claro, xuxu, senão complica, né?”

De pronto, a moça abriu a porta do microondas e lá colocou uma caneca grande com o leite para o meu marido e eu. Enquanto isso os dois copinhos de café jaziam sobre a bancada, juntos e, ao mesmo tempo, solitários, esperando que o leite quente inundasse aquele corpo negro e líquido, que lentamente esfriava, ao sabor do vento e da minha indignação.

Eu não conseguia compreender a situação. Se eu pedi para esquentar o leite e antes havia perguntado sobre a temperatura do café, como poderia agora a gentil senhorita fazer isso comigo?

O forno fez “piiiiiiiii” e nada de a moça aparecer. Enquanto isso... o leite também ia esfriando dentro do microondas.

E eu ia me perdendo no meio dessa coisa, dessa situação insensata, absurda, estapafúrdia... eu só queria um pouco de café com leite quente. QUENTE!!!!!!! Mais nada. No final das contas, ela misturou os dois... o leite já parcialmente frio com o café bem morniiiiinho e eu bebi aquela substância líquida, morena, sem graça, sem poesia, que não provocou arrepios atrás da orelha e nem arrancou pele da língua. Aquele líquido me estufou, me embuchou, me aborreceu. Voltei pra casa abatida, desencantada da vida, embuchada. Passei o resto do dia tomando suco de laranja e comendo poncã... para me livrar da tormenta do café com leite morno, bem morninho da padaria de São Pedro de Alcântara.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 20/08/2010
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