Qual o objetivo da tortura?

O texto que se segue é um comentário sobre um blog da página http://www.comunistas.spruz.com/ que fala sobre a tortura aplicada especificamente a uma pessoa durante o período da ditadura militar no Brasil. Para que fique mais claro o que será falado aqui, sugiro que leiam o post antes. O tema é "Poderia ser sua filha, irmã, sua namorada...

Siga o link:

http://www.comunistas.spruz.com/pt/Poderia-ter-sido-sua-filha-sua-irm-sua-namorada/blog.htm

Assustador! Parece até aquelas histórias de filmes americanos. Gostaria que fosse apenas um filme e que desejaria muito que não fosse verdade. Mas, infelizmente é. Assim, desejo que se torne realidade o seu intento: justiça. Entretanto, mesmo que se faça justiça, uma coisa jamais será modificada: a barbaridade e crueldade ocorrida com Nilda. (e com muitos outros). Como um ser humano chega a esse ponto? Como pode torturar outro ser como ele e não sentir ao menos remorso? Pessoas assim, devem se sentir muito mal consigo mesmas, do contrário, não têm o direito de serem chamadas pessoas. São animais, bichos ou coisa pior. Fizeram o mal. Certo. Em troca de quê? Creio que nem mesmo você, Eduardo, que conhece tão bem bem a história da ditadura e suas barbaridades, conseguiria me explicar por que a crueldade humana deveria ter ido a um extremo tão palavroso, redundante e vazio. Qual a causa disso e o que esses monstros ganharam? Entendo que, hoje, existam pessoas que lutem pela justiça e que esperem um acerto de contas com os culpados. É elogiável. Mas, tente me entender: em uma guerra, é necessário matar, para que não sejas assassinado. De certa forma, justifica o crime. É matar ou morrer. Agora, no caso acima citado... meus olhos chegam a encher de lágrimas só de pensar na imensa covardia aplicada por esses crápulas, bastardos e covardes, que se aproveitavam de uma causa política para praticar suas devassidões grosseiras contra outros. Não acredito, Eduardo, por mais que te pareça errado ou grotesco, que apenas uma causa política, levaria a tremendo absurdo. Soma-se ao fato a libertinagem que a circunstância levou e a pura crueldade daqueles a quem se concedia poder. Eu acredito, sem demagogia, que mesmo uma ditadura, como a que tivemos, poderia ter sido mais suportável se as pessoas envolvidas (digo nos mais baixos escalões também) tivessem sido outras. O problema, sem isentá-la, obviamente, não foi apenas a ditadura em si, mas, o fato de a ditadura ter sido aplicada (incluo os mais baixos escalões também) por sociopatas tiranos e doentes, que, deliberadamente, sentiam prazer em realizar atrocidades contra terceiros.

Seria culpa dos métodos americanos de treinamento sob tortura?

As técnicas de tortura utilizadas no Brasil, ao contrário da idéia de que seriam improvisos dos que aplicam a tortura, têm na verdade, estreita ligação com técnicas desenvolvidas através de experimentos como os do Projeto MKULTRA. Técnicas trazidas para o Brasil e América Latina, através de treinamento e treinadores americanos, estão contidas nos Manuais KUBARK utilizados para treinamento de militares e agentes de segurança brasileiros na Escola das Américas além de em outros programas de intercambio. Vários militares e agentes de segurança do Brasil receberam treinamento na Escola das Américas cujo nome foi modificado para Instituto do Hemisfério Ocidental para a Cooperação em Segurança. Vários membros da força policial brasileira foram treinados por especialistas em tortura que vieram para o Brasil com o objetivo de difundir os métodos e meios de interrogatório compilados pela CIA. Foi o caso do conhecido Dan Mitrione. A recente liberação pelo governo americano de uma lista parcial de nomes de participantes nos treinamentos da Escola revelou também o fato de que militares brasileiros treinaram e participaram de tortura inclusive no Chile.

Ou seria apenas natural, já que, por séculos, podemos observar históricos de tortura? Ao invés de desumano, torturar é que pode ser humano. Desumano é se sentir enojado pelo bem estar causado pela dor alheia. Poder ser, levando em conta o que Pietro Verri, Iluminista sensível, descreve em seu livro, Observações sobre a Tortura, escrito entre 1770 e 1777, a respeito de um processo criminal realizado em Milão no ano de 1630. O ‘processo dos untores’.

Em suma, o processo era sobre uma investigação que visava descobrir os culpados por uma barbaridade: espalhar a peste pelas ruas milanesas untando uma espécie de óleo nas paredes, contaminando, assim, quase toda a população. Eles só esqueceram que, se tal proeza fosse realmente possível, os disseminadores da peste deveriam ser os primeiros a se contaminarem. Ignorando esse fato, depois de muita luta, os governantes conseguem convencer a população a entregar quem aparentasse ser um disseminador da peste, oferecendo uma recompensa para o felizardo. Não demorou muito para que um certo Guglielmo Piazza, um inocente comissário do serviço sanitário, fosse acusado.

Segue a narrativa:

“Parou em frente a uma casa, olhou para ela, fez o gesto de quem estivesse escrevendo sobre o papel e, em seguida, apoiou a mão direita na parede. Foi o quanto bastou para que uma das comadres, que olhava a cena da janela de sua casa, fosse comentar com a outra esse fato, que lhe parecia suspeito. Esta afirmou que também tinha observado os movimentos do infeliz Piazza, achando-os muito estranhos. A partir daí foi feita a denúncia, que se espalhou rapidamente, dando como descoberto o untor. O governo da cidade, ou por ter sido muito pressionado pelo povo ou, possivelmente, por achar conveniente identificar um culpado e assim exonerar-se de responsabilidade, também agiu como se estivesse fora de dúvida a descoberta do criminoso. Guglielmo Piazza foi preso e se iniciou o processo criminal, cujo objetivo era só confirmar aquilo que já se tinha como certo: ele era um dos untores. Brutalmente torturado na presença de um juiz, pendurado pelos braços até que, por seu próprio peso, ocorresse o deslocamento à altura dos ombros, Piazza tentou negar sua culpa, mas por diversas vezes, quando baixaram a corda que o sustinha, esperando que ele confessasse, sua obstinação em afirmar-se inocente irritou o juiz. Este determinou que o suspendessem novamente, até que resolvesse confessar.

Não suportando mais as dores, o infeliz acusado confessou, mas aí se iniciou nova sessão de tortura, para que ele dissesse quem lhe tinha fornecido o ungüento pestífero. Outra vez levado ao desespero, Guglielmo Piazza apontou como seu cúmplice um pobre barbeiro seu vizinho, Gian Giacomo Mora, que, pela descrição feita no processo, Verri conclui que era "semideficiente", incapaz de participar de uma ação criminosa que exigisse esperteza e inteligência.

Igualmente torturado, Mora também acabou confessando. A polícia foi à sua casa e apreendeu uma tina de lixívia, que a mulher do barbeiro usava para a limpeza da casa. O conteúdo da tina foi logo apontado como sendo o material de fabricação do ungüento mortífero e, assim, um reforço da prova.

Desse modo, de tortura em tortura, com apoio na lei e com a construção arbitrária da prova pelo juiz, Piazza e Mora foram condenados à morte, executando-se a pena com a mesma brutalidade observada nas sessões de tortura. Assim se afirmava que estava sendo feita justiça. Tortura e pena de morte, violências irmãs, serviram nesse caso, como em muitos outros, desde muito antes até os nossos dias, para satisfazer os baixos instintos e os sentimentos de ódio de uns e para dar apoio ao cínico oportunismo de outros, que manipulam a ignorância para se manterem numa posição de poder.”

(Conteúdo retirado do site http://www.dhnet.org.br/dados/livros/memoria/mundo/tortura/prefacio.html)

Não podemos nem alegar que tortura é uma coisa antiga já que, por termos acesso a uma quantidade muito grande de informações, vemos, todos os dias, ainda, infelizmente, cenas de tortura brutais, como as recentemente fotografadas no Iraque. Soldados americanos colocando em cima de um caixote, soldados iraquianos, amarrados pelos braços e pelo pênis com um arame eletrificado que, após o contato com o solo, despejaria uma descarga elétrica nas partes do corpo em que esta mantinha contato. é simplesmente assustador! Eles, assim como no caso de Nilda, não esperam conseguir informações, não que isso justificasse, até porque, como no caso milanês de Guglielmo Piazza, a tortura gerou uma confissão espúria, nem esperam que o torturado mude seu proceder. Só querem se divertir. A freqüência com que vemos casos assim é tão grande, a medida que procuramos, que eu chego a um ponto crucial que, com o perdão da expressão , poderei impressionar meus leitores, amigos e pessoas que me conhecem, poderei te impressionar, Eduardo, logo a você, que depositou em mim tanta confiança, mas será necessário escrever: começo a achar que tortura é normal. Anormal é se sentir mal com ela. Pela primeira vez, chego ao final de um texto, cujo tema é uma pergunta, sem respondê-la. Definitivamente, eu não sei. Não sei a resposta e talvez seja melhor que permaneça sem saber. Já estou aterrorizado. Tenho medo de entrar em uma depressão profunda e cortar os pulsos. Mas, não serão os meus pulso que irei cortar. Cortarei os pulsos de nossa democracia bastarda e inconveniente, parcial e inexistente, imprecisa e cega. Como você afirmou, meu caro amigo, Eduardo, não existirá Democracia enquanto não limparmos nosso passado escuro. Mas, agora, eu questiono. Mesmo que limpemos o passado, tarefa essa quase surrealista, uma utopia, será possível nos vermos livres do que ainda acontece no nosso presente. E o pior, daquilo que ainda virá?

Eu deveria ter deixado essa pergunta sem tentativa de resposta. Só o que criei foram mais dúvidas. Então, quem se arrisca?

Prima
Enviado por Prima em 22/08/2010
Código do texto: T2452080
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