Um penny - crônica

Um penny - crônica

Na tarde deste domingo, pressionado pela secura do ar típico do final de agosto no cerrado, me abalei para a rua, em busca de um refrigerante, para tentar amainar o calorão abafado que sentia.

Depois de comprar os refrigerantes, juntei as moedas que tinha no bolso e, resolvi comprar umas balas. Quando estendi as moedas, a moça do caixa me devolveu uma delas, dizendo que não podia aceitá-la, pois era estrangeira. Me desculpei meio sem jeito, tentando me lembrar onde a havia recebido de troco pela manhã – o que ocorreu entre o café da manhã na esquina, a ida ao jornaleiro e, as compras domingueiras do supermercado.

Então a moça do caixa comentou que a circulação dessas moedinhas tinha virado coisa comum, nos últimos meses, e que era preciso atenção, para não recebê-las no lugar da nossa moeda de 5 centavos de Real, pois, a despeito da diferença de tamanhos, eram, aparentemente, feitas do mesmo material, ficando com o tempo e o uso, com a mesma aparência pardacenta do bronze zinabrado.

A moeda em questão é inglesa – um penny. Equivale bem menos do que a 5 centavos da moeda nacional, motivo pelo qual, acabei sendo lesado por duas vezes, muito embora, talvez eu tenha sido o elo final dessa cadeia de malandragem e enganos estabelecida, por sorte, no nível de centéssimos de moeda – Real ou Libra.

“One penny”. Não é nada difícil supor de onde tenha vindo. Tendo sido colocada em circulação no bairro, só pode ter saido da mão de alguém que retornou bem recentemente da Europa, para onde deve ter ido em busca de trabalho mais rentável, diante da crise de empregos gerada no continente europeu, depois do debacle que começou com a crise imobiliária americana ou, que tenha cruzado com as polícias de imigração, que mais e mais vão apertando o cerco contra os “ilegais”, na América, Canadá, Europa e Ásia*.

De fato, deve ser um daqueles moradores do bairro, filhos de imigrantes de outras regiões do Estado e do país, que por força das circunstâncias ou, simples vontade de fazer uma poupança rápida e dar um novo rumo à vida, ou ainda que, usando do discurso da necessidade, resolveram viver uma aventura numa pátria distante (e em tal caso, os motivos são muitos, díspares e, diferentes, à parte o fato de que, num mundo supostamente sem mistérios e fronteiras, a curiosidade e o desejo de aventura ainda não cessou, no peito dem muitas pessoas), arribou e, foi em busca de seus intentos em uma pátria distante.

Provavelmente, um daqueles que deixou para trás mulher e filhos e, foi trabalhar em serviços duros ou algo humilhantes, que certamente não aceitaria por aqui. Ou, uma daquelas moças que cedo conheceram as agruras da maternidade sem a assistência ou a presença de um companheiro, que deixou os filhos com a mãe e, até avó, para aventurar-se a enfrentar um mundo desconhecido, em atividades exaustivas ou, até na mesmo arriscada profissão da prostituta, algo comum comum entre aquelas que migraram para Portugal e, especialmente, Espanha**.

Um centésimo de libra inglesa. Qual será o valor real dessa moeda, frente ao Euro e, depois da crise? Certamente, ela não exprime um valor de face verdadeiro, do ponto de vista econômico (e, não estou falando na relação da moeda com a reserva correspondente em ouro em alguma entidade estatal, que isto perdeu o sentido, após o acordo de Breton Woods), pois não deve valer mais do que algumas centenas de milésimo da moeda do país.

Embora não seja tradição por aqui – onde a inflação já chegou 2.700% ao ano na era Sarney, nos países onde a economia conheceu longos e históricos períodos de estabilidade, a população tem um apego orgulhoso com tais moedinhas – muito embora já não tenham valor real de face, têm um valor de natureza moral e nacional.

Na moeda em questão, há um sinal evidente de uso anterior, pois, além do zinabre, tem uma mancha parcial de oxidação na face que exibe a rainha Elizabeth. causada provavelmente por ácido graxo (gordura).

Porque foi posta em circulação? A hipótese de engano, pelo que ouvi da moça do caixa, é a menos provável. A possibilidade é que alguém a colocou em circulação na economia do bairro, com o claro intento de obter uma vantagem ilícita – embora ínfima e, patética - de alguém.

Apesar de ser um fato conhecido pelos países América do Norte e da Europa que os imigrantes brasileiros são uns tipos bastante ordeiros – respeitam e assimilam rapidamente as leis, os regulamentos e, enfim a forma de viver e os costumes dos países para onde migram, recusando-se, por exemplo, a criarem enclaves e locais onde possam tentar restabelecer um simulacro de pátria ou da sociedade de origem, se sabe que, mesmo depois de passar até mais de uma década fora do país, se assimilando a cultura do comportamento social esperado de gente comum (ainda que, em parte, à conta do medo da “migra”), no momento em que retornam, muitos nacionais readquirem ou voltam à pratica de velhos e lamentáveis costumes nacionais.

Entre tais costumes, está a prática da “Lei de Gerson”, isto é, a constante busca da vantagem ao custo do sacrifício do direito ou patrimônio de outrem – o que se manifesta até mesmo na substituição de uma moedinha local por uma moeda estrangeira, na hora do do pagamento de uma continha, no boteco da esquina...

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*Longe da família e dos filhos, o imigrante tenta recompensar a ausência com o envio pontual e mensal de dinheiro, que além de custear o ensino escolar particular, paga também a frequência a uma academia, para o aprendizado de algum esporte (as criancinhas, vão, invariavelmente, para a natação), por exemplo e, a compra de gadjets de informática e comunicação, tais como computadores, celulares, câmeras fotográficas digitais, com os quais os país buscam estreitar o contato com os filhos e familiares, pois – talvez o leitor não tenha experiência a respeito, ou tenha ouvido dizer, com o tempo, vão se esfumando da memória de quem vive distante, as lembranças dos contornos do rosto, expressões faciais e, a voz do entes queridos...

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** Meu irmão caçula, que emigrou para a Espanha por uns tempos, me contou que ficara abismado ao conhecer, em solo espanhol, edifícios de até 5 pavimentos cuja arquitetura já era pensado para o estabelecimento do “negócio” da prostituição, cidadelas rigidamente controladas, onde se encontravam “abrigadas” em pequenos quartos, centenas de mulheres oriundas de toda a América Latina, Rússia, Tailândia, Bósnia e muitos outros países.

O destino daquelas mulheres era, muitas vezes, cruel, pois quase todas já saiam dos países de origem vinculadas a um “contrato” que, significava pouco mais que uma carta de submissão à escravidão.