Carlos, Drummond e Andrade

- Bom dia, doutor.

- Bom dia, Rosângela. Já marcou os horários com todos os pacientes?

- Já sim, doutor. Aliás, hoje o primeiro é aquele que o senhor adora.

- Ótimo. De todas as figuras que me aparecem, esse é o que mais me impressiona. Dizem que o psicólogo estuda problemas alheios porque não consegue cuidar dos seus. Não creio nem descreio, mas esse paciente é a prova de que nosso trabalho tem que ser respeitado.

Doutor Filermino entra na sua sala. O consultório é pequeno, com muitas gravuras interessantes nas paredes, e os móveis organizados de modo que dê a melhor impressão possível. E isso é o suficiente para atender seus clientes e fazê-los se sentir confortáveis.

Enquanto virava e revirava seus papéis na intenção de organizá-los, a porta se abre devagar e entra o tal sujeito que esperava. Era alto, do jeito esquisitão. Seus parentes o haviam internado em um hospício por achar que era três pessoas ao mesmo tempo, mas descobriram que terapia psiquiátra era suficiente:

- Bom dia, doutor.

- Bom dia... sr. Andrade?

- Não, doutor, sou eu, o Carlos. Já me sinto enjoado de me confundirem tanto com esse tal de Andrade. Assim vou acabar achando que sou duas pessoas ao mesmo tempo!

Filermino deixa escapar um sorriso percebendo a ironia de seu paciente. Aliás, a ironia era um artifício muito usado por Carlos, que tinha uma forte personalidade, um ego marcante:

- O que tens feito nesses dias, Carlos?

- Ah, nada de mais. Fui à feira, mas não gosto de ir. As pessoas me assustam um pouco. Acredita que eu vi, com meus próprios olhos, um rapazinho roubar umas roupas e sair correndo como uma mula? O pior era que nem era tão cara assim.

- E o que você sente em relação a isso?

- Me sinto ótimo. Me sinto ótimo por saber que não sou feito para esse lugar. É como se eu não fosse humano. Sinto pena da humanidade e me pergunto aonde vamos parar. Sabe, nem consigo mais confiar num pobre comerciante quanto ao preço de algo.

- Eu já percebi que o senhor, de certa forma, se sente melhor que as outras pessoas, melhor que o mundo em si. Isso é verdade?

- Não, imagina. As pessoas que são piores que eu - diz Carlos, num tom sarcástico.

- Bem - disse o doutor Filermino - Vamos tentar aprofundar nesse seu sentimento. Diga-me como foi sua Infância.

- É aquela velha história, doutor. Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. Minha mãe ficava sentada cosendo.(...) Eu sozinho menino entre magueiras lia a história de Robinson Crusoé.

- Hum, Robinson Crusoé, uma boa história. Deve ter marcado muito sua infância.

- Sim, eu me inspirei muito nele. E eu não sabia que minha história era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

"Realmente, esse Carlos tem uma personalidade de fogo", pensou o doutor Filermino - Bom, nossa sessão fica por aqui, e foi muito produtiva, por sinal. Poderia fazer a sutileza de chamar o Sr. Andrade quando estiver saindo? Deve estar na sala de espera.

Carlos saiu da sala da mesma forma que entrou: ombros erguidos, olhando para frente, com o queixo empinado. Não passou nem dois minutos e tornou a entrar. Ou, de acordo com sua mente doentia, convocara Sr. Andrade para a sala de Filermino:

- Bom dia, Andrade - cumprimentou o doutor quando viu aquela figura, olhando para baixo num tom meio depressivo, entrar na sala.

- Mau dia, doutor, mau dia. Hoje acordei tão desacreditado...

- Continue.

- Sabe aquela sensação de que, quando você se sente grande, potente e poderoso, acontece alguma coisa que mostra sua insignificância, sua incapacidade de agir? Multiplique por dez e sabe o que eu sinto.

- Me dê um exemplo dessa sua crise.

- Bem, uma vez eu cheguei a pensar que era melhor que os outro, que eu sabia o que era certo mas os outros não podiam ver. Ironizava, pensava que podia expressar esse quê de superioridade.

- Maior que o mundo... - murmurou doutor Filermino, com a imagem de Carlos na cabeça.

- Mas, quando vejo essa guerra repugnante, esse sistema, foi como um balde de água fria. O peso do mundo que estava embaixo de mim agora está nas minhas costas.

- Realmente é um caso complicado. Você precisa se aceitar - diz Filermino, usando esse clichê de psicólogos como saída para o vexame de não saber como lidar com o caso. - Talvez você queira alguns conselhos...

- Aí que está a parte mais engraçada - interrompe Andrade. - Eu adoro dar conselhos para meus amigos. Uma vez conversei com meu velho amigo José. Ele estava abatido com a velhice, então fiz uma análise de sua situação. "E agora José?", indaguei, "está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho, já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode. (...) se você dormisse, se você cansasse, se você morresse... mas você não morre, você é duro, José!"

- E qual foi a reação dele?

- Não, doutor, a pergunta é: qual foi a MINHA reação? Eu percebi que eu era como José, que, na verdade, eu estava falando de mim.

O doutor ficou impressionado com a destreza de Andrade com as palavras. Ficou incomodado com a sua certa insignificância nessa sessão, que estava mais para auto-terapia:

- Sinto muito, Andrade, nosso tempo acabou. Até a próxima semana. Faça o favor de chamar o Sr. Drummond quando sair?

Do paciente predileto, Drummond era o mais querido dos 'três'. O mais sensato e coerente, reconhecia a doença e não se voltava contra o mundo. Drummond percebia que era parte da humanidade, que ele estava contido no todo e o todo contido nele. Filermino o considerava um amigo, e passava minutos a fio conversando sobre tudo, com Drummond inclusive ensinando Lições de Coisas que doutor Filermino se empolgava.

Descontraídamente, Drummond soltou uma frase que resume não só sua percepção das coisas como o mundo que tanto se interessou:

- De poeta e louco, - disse - todo mundo tem um pouco.

Athos Krochensko
Enviado por Athos Krochensko em 28/08/2010
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