A nossa fame doutrora

Já podem em Madri falar

com palavras bem formosas

que nunca, nunca nos hão de

pagar a nossa fame de outrora

(Fuxan os Ventos)

Admito que procuro passar pouco por Madrid; houve um tempo em que já visitei o Museu do Prado, o Rastro, e andei em barquinha polo parque do Retiro; mas agora procuro, mesmo que tenha que passar por essa cidade, não parar muito nela. O destino, com ajuda da greve encoberta dos controladores aéreos, fez que o nosso voo desde Santiago de Compostela, de 50 minutos de duração, se atrasasse mais de duas horas. Chegamos quando o nosso trem rumo ao Mediterrâneo já tinha partido com os nossos assentos vazios...

Decidimos ficar perto de Chamartín para apanhar o primeiro comboio da manhã, tiramos novos bilhetes, comemos qualquer cousa, e fomos para um hotel próximo à estação ferroviária. Dormimos, mais mal do que bem, por algum motivo as camas dos hotéis nunca aprendem a se fazer molinhas. A noite foi passando aos poucos, partida em trechos... os ruídos, as luzes que se coam por debaixo da porta, e essa luzinha vermelha no teto do quarto piscando e piscando... e fazendo pensar na possibilidade dum incêndio e em que estávamos a dormir no andar número nove...

Há algo de antinatural em dormir nessa altura, e algo de natural nas fobias... mas a mim essas coisas já me tiram pouco sono... O calor, mesmo dormindo a gente nua, era incómodo, e a hora de se erguer parecia demorar de propósito. Não foi preciso despertador para acordar... Um duche e à procura do pequeno almoço... no elevador, que descia, encontramo-nos com uns vizinhos de Braga, reconhecemo-los pola maneira de falar... ao chegarmos à receção eles foram bem atendidos diante de nós falando na nossa língua e nós a seguir fomos também atendidos da mesma maneira... o rececionista informou-nos de que a sala do pequeno almoço estava... ‘ao fundo do corredor à direita’ num sotaque que nós identificamos como galego, e eu que nunca pensara na utilidade prática do uso da nossa língua em Madrid aí lha acabava de encontrar.

Todos os membros da Lusofonia poderiam ser apropriadamente atendidos se os empregados fossem galegos, ou galego-falantes, que ademais podem atender à perfeição aos castelhano-falantes... Lembrei a cantiga de Fuxan os Ventos que nos anos oitenta tanta força me tinha dado, e pensei que talvez a hora de falar em Madrid com palavras bem formosas tinha chegado... Fomos para a sala do pequeno almoço, que eu sempre me pergunto como se pode chamar assim um lugar onde a comida é muito, muito, mas muito excessiva... e pensei que talvez a hora de matar a nossa fame doutrora, quer seja de língua, quer de pão, tenha chegado...