O uivo choroso do Toquinho.

O uivo choroso do Toquinho.

Dona Josefa vive na clausura de sua casa, numa vida bem solitária, à conta de sua viuvez e a distância do filho que vive na capital e, não a visita tanto quanto ela gostaria. Na casa modesta em que vive - periferia da cidade, vê os dias e a vida passar, no seu silêncio mineiro, em sua forma retraída e distante de lidar com o mundo.

Algum tempo atrás, ela ganhou a companhia de um cachorrinho tímido e, educado, que apareceu por lá, assustado e com fome, e, foi ficando, com o tratamento recebido, que tinha há ver com a coincência de ambos no silêncio e os atos comedidos.

Estabelecida a afeição, ela o batizou com o nome de "Toquinho", nome que se relacionava com sua pequenez e, aspecto compacto.

Dona Josefa, nascida na zona rural, no interior das Minas Gerais, já havia notado que ele parecia ser um "paqueiro", aqueles cães resultantes de cruzamentos raciais específicos, que os caçadores utilizavam antigamente, na época em que a caça era tolerada - animais capaz de se enfurnar nos brejos, atrás de pacas e capivaras, ou cavar buracos para expulsar de lá, tatus, ou ainda, para correr pelos campos e fazer perdizes e inhambus levantarem voo, para apanhá-los depois, quando eram alvejados no ar.

De fato, Toquinho trazia nas patas grandes, os sinais longínquos da raça Basset Round - denunciados pelo nariz longo e orelhas grandes e, alguma outra raça mais robusta, o que se podia inferir das patas graúdas, e da musculatura destacada no corpo pequeno.

Não demorou, para que ele mostrasse sua inteligência e, o bom adestramento recebido anteriormente, pois cuidava das galinhas cuja criação, abrigada numa casinhola rústica, ela mantinha e era tolerada, pela vizinhanhança e, pela prefeitura. Diante de uma ordem, partia para a rua e o pasto dos fundos do lote, em busca das aves, que vinha tangendo para casa. Na recusa, as agarrava gentilmente pelas asas ou pelas pernas, para entregá-las gentilmente, nas mãos da dona da casa.

De vez em quando, Toquinho dá uns repentes de vagar pelas ruas da cidade, como se buscasse por alguém, pelo passado ou algo inexplicado - e o faz por horas seguidas, mas sempre tornava ao casebre da sua protetora. Se chega em casa e, não encontra a dona, volta para a rua e, vai percorrendo os lugares onde a Dona Josefa costuma ir, casa por casa, loja por loja, e não sossega até encontrá-la e, segui-la contente, no retorno para o lar.

Mas, há algo que sempre denuncia algo que vai no fundo da memória, ou consciência de Toquinho: é o carro de propaganda volante do Divino "do Táxi", quando desce a rua, no pregão de lojas, avisos de órgãos públicos, ou dando notas de falecimento - ocasiões em que a locução é feita sob um fundo musical com um solo tristíssimo de pistom.

Mal ouve a voz de Divino no autofalante do carro, Toquinho corre para o portão de grades vazadas da casa e, uiva alto e, choroso. E os seus tristes e fundos uivos não cessam até que o som do carro esteja tão longe que seus ouvidos privilegiados possam ouvir.

Alguns vizinhos - alguns dos quais já meio contrariados com o choroso Toquinho, acabou associando tal comportamento com a suposta memória da perda de alguém da família misteriosa a quem ele pertencia anteriormente, justamente porque na primeira vez que dona Josefa e a vizinhança notou o fato, o locutor anunciava justamente uma "nota de falecimento". Outros, julgam que talvez a questão esteja relacionada específicaemente com o efeito da voz amplificada do locutor, que por algum motivo, despertaria os sentidos - ou memória do cachorrinho.

De qualquer modo, seu comportamento já ganhou fama cidade, onde muita gente pensa em filmá-lo no momento de seus uivos comoventes, para colocar no You Tube.

Independente disso, ele e sua nova dona seguem vida afora, um fazendo amorosa companhia ao outro, divindo os dias, em gestos econômicos que vão preenchendo as horas, mesmo que dividam quase sempre imensos silêncios, solidões ou perdas.