O Sobrado

Então meus pais resolveram comprar um sobrado. Era o primeiro da vida deles. Finalmente uma casa própria depois de mais de uma década de casados, os filhos já nascidos. Um sobrado no Cambuci! O Cambuci é um bairro centenário da região central de São Paulo. Um dos primeiros bairros e que recebeu, no passado, um grande número de imigrantes italianos para o trabalho nas primeiras fábricas. Um bairro operário cheio de histórias de vida e de saudades. O sobrado era bem próximo da fábrica de chapéus Ramenzoni – uma fábrica de grande porte, com aquela aparência externa de final de século XIX, numa região plana, bem defronte à antiga Light. Ali o trabalho operário se concentrava e a vida seguia sem grandes mudanças e sem muitas emoções. Bem próximo existiam as feiras – as poéticas feiras de São Paulo, onde se vendia de tudo: frutas e legumes dispostos nas bancas com capricho, doces, bolachas, balas, coco ralado, pimenta, peixes, frangos, miúdos, utensílios domésticos, roupas, calçados. E a vida apenas seguia e as pessoas eram mais sérias, comprometidas com a sobrevivência e ponto.

E então eles compraram o sobrado. Para mim era encantador. Sair de um apartamento de fundos, escuro, calado, para uma casa que dava de frente para a rua! Essa rua tem ainda um clima de anos 60. É suave, com as suas casas pequenas, a grande maioria sem garagem, na sua mais absoluta simplicidade. Do sobrado dava para se ver o transitar das pessoas, as buzinas dos carros que ainda não provocavam congestionamentos. Pessoas iam e vinham e nunca se viu por ali brigas entre vizinhos ou rodinhas de mulheres fofoqueiras, esbanjando veneno. Era uma rua que concentrava pessoas ocupadas com as próprias vidas e com as suas histórias de luta.

De início, para mim, um mistério! Teria assombração naquele sobrado? Isso porque havia uma caixa de luz na sala. Na porta da caixa, uma bailarina estampada, de roupas bem coloridas, parecia feliz – ou se fazia de feliz. Não importa! O homem que foi fazer a pintura da casa reclamou para o meu pai que, à noite, ela vinha dançar à sua frente... Que medo! Será mesmo que uma mulher sairia de uma estrutura de madeira para, na calada da noite, dançar? Minha mãe logo resumiu: “não tenha medo. Esse homem é bêbado”. Me acalmei e não pensei mais no assunto.

Da janela do sobrado eu sonhava. Fazia planos para a minha vida adulta. Respirava! Buscava oxigênio para tantos sonhos. Eu queria crescer, ser dona do meu destino, criar e cuidar da minha própria lâmpada, andar muito e olhar. Eu queria desenvolver um olhar que fosse compassivo, amoroso, paciente. À noite eu olhava para a esquerda e me deparava com as luzes do bairro do Ipiranga. Nada mais fascinante que as luzes de São Paulo à noite! Uma promessa de sonhos, de conversas, de entendimento, de troca de saberes, de valorização de cada detalhe da vida. Uma provocação ao amor pelo humano, pela quietude, pelo encontro. E tinham estrelas, caladas, cada uma na sua solidão, na sua tarefa de iluminar as vidas, as almas às vezes inquietas, os sonhos, os projetos de vida, o olhar de esperança...

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 14/09/2010
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