UMA VOZ DO ALÉM

- Dedico esta crônica à colega Rosa; conhecida no Recanto pelo codinome Mirea.

É no que dá ficar remexendo o passado. Um apreciador destes arremedos de crônicas, não acreditou ao ler: “- Você?” Tudo por conta de umas reminiscências, extravagâncias da juventude. Rapaz sonhador caí num verdadeiro ninho de subversivos, que era a FAFICH-BH, (Faculdades de Ciências Humanas, da UFMG), cursando letras, na primeira metade dos anos 1970... Naquele prédio nunca rebocado por fora, sem elevadores nem escadas, e sim rampas compridas que se externas deixariam a construção parecida com pirâmide asteca. A faculdade fervilhava de idéias e ações.

Este parágrafo é para lembrar um ‘inimigo’ falecido há pouco, velhinho. Na época - ditadura militar -, os tais Órgãos de Segurança (a turma que batia) infiltravam nas salas de aula, agentes seus. Na minha turma havia um sujeito afável, mas reservado, cabelos grisalhos e cortados baixo, roupas arrumadinhas, que dizia estudar por diletantismo. Sentava nas últimas carteiras, não entregava trabalhos, nem fazia provas... Mas disto nós outros só atinamos quando, por empenho de colegas ele foi com a turma entortar umas geladas no barzinho. Às tantas, quando já se havia falado de futebol-mulheres-futebol-mulheres... meio-alto ele deixou escapar que era oficial da PM, reformado... Adeus FAFICH-BH, para mim!

Tem tudo e ao mesmo tempo nada, a ver. Caso o leitor venha ao Capivari, arraialeco além dos arrabaldes de Bom Despacho, perguntando por Manoel Feliciano ninguém vai dizer que uma vez ele botou os pés ali. Mas se indagar pelo codinome “Lilico”, até os cachorros apontarão com o rabo, um moreno adentrado em anos – os de sua raça quando branqueiam a cabeça é porque passaram dos setenta! A propósito, foi por causa da idade que ele conheceu o Raimundo, do INSS, que em tarefa rotineira encaminhara-lhe os papéis de aposentadoria. Na sua simplicidade, Lilico acha que o funcionário prestou-lhe um favor inestimável; reconhecido pelos frangos-caipiras com que presenteia o benfeitor, também por gratidão chama ele agora de “Cumpade Mundinho”. Testemunha desta prosa.

Curtido na lida de roça, o Lilico não entrega os pontos e reforça o orçamento zelando de um sítio no Capivari. De segunda a sexta-feira: porque no final de semana (ninguém é de ferro) ele vem para a cidade sentar as namoradas no colo, apreciando cervejas. Na roça capina, conserta cerca, mata formigas e cupins... É pau-para-toda-obra. Como a de que trata esta crônica, quando para trocar o engradamento do galinheiro, cismou em cortas as varas num capão de mato, com fama de mal-assombrado.

Rezado o Credo de trás para frente - que é como se garante das ruindades de Belzebu -, meio ao calorão da tarde, tirado bom feixe de varas jogou o chapéu de banda. O danado foi pendurar-se justamente numa cruz velha, ao fundo da clareira aberta por ele, revelando que alguém morrera no lugar. “Fodeu tudo!” Lamentou para si mesmo. Não apreciando os prognósticos que relampejaram embaixo da carapinha alvoroçada, sem gestos bruscos tentou juntar as derradeiras varas cortadas, na firme intenção de cair fora daquele lugar amaldiçoado - onde por descuido de fé fora lenhar. Só então, percebeu que estava laçado. É que no vai-e-vem se embaraçara nos cipós. Pior. Em meio ao silêncio, teve certeza de que uma voz do além pedia: “Chega mais perto, companheiro!” Força nenhuma, deste nem do outro mundo foi capaz de sojigar o Lilico, que escafedeu. Botando a alma pela boca chegou ao Capivari. Passado um tempão, recuperados o fôlego e a fala contou a esfrega. Todos na venda ouviram descrentes. Aí, ele lançou o desafio: “- Tenho uma nota de cinquenta, aquela da onça, até cheirando de nova guardadinha lá em casa, quem buscar a foice pra mim fica com a bichana pintada pra ele!” Até hoje a ferramenta do Lilico continua enferrujando, na mata.

dilermando cardoso
Enviado por dilermando cardoso em 15/09/2010
Reeditado em 03/02/2011
Código do texto: T2499360