INTRUSA

     Como toda e qualquer funcionária pública – concursada, diga-se de passagem – tenho direito à licença prêmio. E neste setembro ainda vestido de inverno vivo esse benefício bem merecido, é claro, já que nunca trabalho menos do que nove ou dez horas, por dia.

     Quarta-feira meio lá, meio cá deixou um sol pálido me acordar hoje para, no fechar as portas da manhã, explodir em luminosidade e calor a ponto de derreter de azul o céu grávido da primavera. Céu imaturo ainda para parir os campos de girassóis altivos, minhas flores preferidas, diga-se de passagem.

     A manhã como outra qualquer me pega pela mão e me leva pacientemente até a oficina do Seu Manoel, português sapateiro de olhos bondosos e uma linda careca, clone do meu avô há muitos anos já em outra vida.

     Gosto de ser carregada pela manhã de um dia descompromissado, de agenda vazia pelas ruas do bairro. Deixo os passos vagarosos percorrerem em ziguezague as veias arborizadas da cidade cujas sombras refrescam o calor atípico de um inverno destemperado.

     Não me perguntem o motivo, o porquê mas a manhã entregou minha mão para a tarde ainda nascente. Com minha nova guia, senti meus passos apressados serem conduzidos a uma igreja, local que há muito tempo meus olhos não viam.

     Guiada pela tarde ainda menina entro no templo vazio, em hora de almoço, e me deixo ser abraçada pela fumaça, pelo calor das velas acesas que bailam sua luz na fronte dos santos.

     Meus olhos – que agora sempre estão sorrindo – deixam cair minhas pálpebras em Francisco de Assis que, no altar, ampara o filho de Deus crucificado.

     Deixo minha alma vaguear pela nave barroca vestida de ouro e prata e, com o coração, sussurro preces de agradecimento e pedidos de proteção aos que amo e amarei por toda a minha vida.

     Já estava estendendo minha mão para voltar a casa conduzida pela tarde adolescente, quando escuto um murmuro próximo a mim. A princípio pensei ser a voz de minha consciência, do meu espírito protetor, mas não era. Um pouco atrás, um jovem senhor, aparentando já ter passeado por mais de meio século de vida como eu, cantava para Francisco de Assis e Jesus: “Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz...”. De sua boca, um som digno dos anjos atingia todo o templo e transformava a atmosfera em plena, pura e mágica paz. Pensei em até tirar o celular da bolsa e gravar aquele momento. Mas, achei melhor não, porque o canto, a voz, a música que se espalhavam pelo interior do prédio do século XVI eram um louvor a Jesus e Francisco de Assis.

     E, com certeza, quem seria eu para retirar daquele ambiente a voz celestial que conversava música no templo vazio somente com  os dois seres de luz? Eu era tão somente, ali, uma intrusa. Assim, peguei a mão da tarde e saí, mas sem deixar de aconchegar aquele canto divino bem dentro do meu coração, da minha alma; decidi levá-lo comigo, para sempre, para dividi-lo com aqueles a quem amo.


Foto: Denise Mello - Matriz de Nossa Senhora de Assunção - Anchieta - Espírito Santo - março/2010