POR VEZES A VIOLÊNCIA!

Helinho reside nu’a pequena “cafua” num vale dentre montanhas na periferia de Sabará.

Não dispõe de mínimo conceito formado sobre violência, a não ser as minudências dos dramalhões que lhe chegam, cavalgando as ondas de rádio que sobem o morro, sem precisar de transporte público.

Helinho não lê jornais. Televisão? Só novelas!

Em coluna de jornal, num tempo em que não sei quando, inscrito com todas as letras, as evidências de uma cultura jurídica reticente, dissecada por um membro do Ministério Público, numa avaliação mordaz, e intrépida, sobre a lei de Crimes Hediondos. De lambuja, uma chusma de palavras bonitas, sobre o regime prisional.

Na coluna Cartas, do mesmo veículo, no mesmo tempo do verbo, professor da rede pública, reclama de rude abordagem policial na rua. Noutro caderno, o tétrico da morte de um cidadão dentro de viatura policial, depois de algemado e preso, por questionar a qualidade do café que lhe serviram numa lanchonete. Militar flagra um integrante da força policial circulando com um “clone” de seu carro. Deputados de Brasília se perdem nas teias do vil, e no bafejo das sirenes de ambulâncias, que servem pra tudo, menos para transportar doentes.

Sob esse pano de fundo, em dois dias seguidos, duas cenas me chocam. Sob luzes de enormes torres de iluminação, sem o menor pudor, uma jovem é agredida a tapas e pontapés, por um miliciano exaltado. Menos de mil metros e vinte minutos dali, sob o brusco fechamento do semáforo, motorista de um velho fusca, é surpreendido pela abordagem de ocupantes de uma viatura policial, que de armas em punho, o submetem a uma rigorosa revista. O fato se repete no dia seguinte, mesmo local, agora, à luz do meio dia; jovens motociclistas(um negro dentre eles), são interceptados com arma de alto calibre apontadas para suas respectivas cabeças...

Calma. Precisamos de muita calma e sensatez. Di-lo o ilustrado representante do Ministério Público.

A sociedade está prestes a se animalizar. Não se cura violência com violência, pura. Uma sociedade mórbida de violência precisa de muito mais que leis, decretos, cadeias, cães, fuzis e cassetetes. A lei dos Crimes Hediondos, nasceu de um surrealismo dramático como que de u´a ficção novelística, sem querer ser paradoxal. Não cumpriu a destinação que lhes destinaram, à frente dos holofotes. Não foi capaz de incidir na diminuição do tráfico de drogas; a mesma eficiência não se viu com efeito aos crimes violentos de homicídio, de seqüestro, de estupro, deixando visível que não se cura violência com recrudescimento de atitudes.

Helinho é negro, pobre, analfabeto e sem coordenação dos sentidos. Passados de uns dez anos, acertou os “vazios” de “Nozin” com um pequeno canivete, merdinha de lâmina, mas foi capaz de provocar em “Nozin” o resultado morte. Indiciado, depois de quebrado o flagrante, foi denunciado por homicídio na forma qualificada. Motivo fútil! Crime hediondo! Disse-o o Defensor da Sociedade!

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Violência gera violência. Eu disse?

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No bar, quieto em seu canto, um tapa no “pé do ouvido”...

Helinho reagiu. Não era o pateta de hoje; tinha bem noção do que fazia, sim.

Nomeado para a defesa, fui ao júri em favor de Helinho. Usei como teses, a “Violenta Emoção” e a “Legítima Defesa Própria”. Venci na segunda tese. O Conselho de Sentença, reconheceu o fato mas o livrou da pena, justificando sua atitude.

Do murmúrio da platéia, o eclodir de censuras radicais. Porquê defender Helinho se ele matou?

Socorro-me da opinião do insigne representante do Ministério Público, impressa no jornal que li. Uma teia de opiniões são plantadas em nosso meio, sem qualquer balizamento científico. Fruto do imediatismo, da cegueira e do preconceito social, da corrupção (o danado, mas tão realçado, do “jeitinho brasileiro”!), da avidez pelo lucro fácil, do vedetismo, da sedução dos holofotes.

A banalização dos costumes, da vida, chega-nos pelas ondas parabólicas. Pelo mesmo caminho, astros do cancioneiro popular, políticos de origem duvidosa, vítimas ensandecidas, comentadores de faz-de-conta, sem qualquer embasamento empírico, se transformam em cientistas do comportamento, formadores de conceitos e de opinião, com receitas milagrosas, quase sempre fatais em sua objetividade finalistica, juizes “do eu acho”, ávidos de sangue e de vingança, o que não é bom para uma verdadeira justiça. E a platéia se delicia em delírios.

Nesse direcionamento, Cesare Lombroso, não raro, vem servindo de balizamento para desavisados promotores de acusação, que ainda o invocam nos pretórios. Batem-se pelo recrudescimento das penas, cobram dos conselhos de jurados, a aplicação de seu climax a todo e qualquer julgamento, de não menos qualquer desafortunado que cai dos morros de periferia. O mundo moderno rompeu com Lombroso. Nós o estamos resgatando, pelo simplismo de achar que acabaremos com as formigas pisoteando-as debaixo da laranjeira. O presidente do Mundo joga bombas no Oriente sem obter resultados efetivos e essa é a prova. Precisamos de um conjunto de leis cientificamente adequadas à nossa realidade, de um judiciário comprometido, um Ministério Público vigilante, uma polícia mais cientifica e menos torturante, de Políticos e não de “políticos”, de um sistema prisional recuperante, e de uma imprensa livre, porém formada por mais jornalistas e menos mercadores, preocupada mais com o informar que com o vender.

Longe dessa linha de raciocínio, o futuro nos aponta para um horizonte de gaiolas. Depósitos de presos distantes, sem quaisquer direitos, longe das ruas, para que os BMWs e as Mercedes reluzentes rodem despreocupadas.

Nosso sistema prisional é fabrica de monstros.

Não tivesse vencido o júri, Helinho estaria no cárcere, entre eles, sem direito a progressão de regime, conforme prega a Lei dos Crimes Hediondos. Helinho não é homem perigoso, vive de catar latinhas, depois de um AVC que lhe deixou pequenas seqüelas mas que perturbou-lhe a mente. Já não sabe dizer a idade que tem, nem a dos filhos, mas não voltou a delinqüir e nem aceita essa hipótese.