42 anos depois!...

A Estação de Santa Apolonia


Extraído do meu Livro "Crônicas da Emigração - Catramonzeladas Literárias" deixo-vos aqui o registro daquilo que foi a minha "entrada na emigração Luz & Tana"!!!
(007) – “A Estação de Santa Apolônia”!!!

La Rochefoucauld dizia que; "sempre amamos aqueles que nos admiram, mas nem sempre amamos aqueles a quem admiramos" ...
- eu me admiro, até hoje, como entrei nesta canoa furada da emigração???!!!...
>>> Estação de Santa Apolônia, ...idos de março de 1962. O comboio procedente da linha do norte ( Campanhã no Porto) acabou de chegar na linha numero 1, era ainda de manhã na capital do reino...
- Eu continuei ali sentado dentro do vagão, lá bem no canto do banco de madeira polida de tanto fundilho de calça já se ter utilizado dele que dava até p'ra escorregar devagarinhoooo!!!!!!!!....
- Pum!...
(eu acordei sem querer).
- Pudera também já desde a meia noite que eu não pregava olho a tentar vislumbrar algum lugar por onde o comboio passava.... afinal era o meu primeiro dia de emigrante e por isso era uma data muito importante na minha vida.
- O revisor bateu com o alicate nas costas do banco, onde eu estava já perto do meu ouvido quando se aproximou de mim e perguntou; então ó pá!... não vais sair daí?...Olha que aqui é o final da linha.
- Não senhor,... eu estou à espera “dum home” que vem me buscar cá. - A minha mãe disse que ele vinha, e que estava aqui à minha espera!,... aatão eu espéro aqui, num é?!
Oh, caraças!!!,... então tu não tens aqui ninguém da tua família, cá em Lisboa?
- não senhor! A minha mãe disse c' o home se chama Mário e é filho da Ti "Ermelinda" (?) lá de Sueima, ele andou na tropa c'o mou irmão lá na Índia, sabe?...
- A minha mãe disse também que era p'ra ele me vir a buscar aqui à'stação da Santa Apolónia, aonde o "camboio" parasse...
- Valha-me a nossa senhora d'Agrela, esta agora!...
(dizia o revisor) - então vai lá p'ra fora garoto, pode ser que o tal Mário ande à tua procura lá fora, pá!!!
- E este "camboio" já vai voltar p'ro Braço de Prata poças! ... tu não podes ficar aqui! ...ai qui caraças o garoto vem parar aqui sózinho neste meio do mundo!... logo aqui na capital, tu qu'idade é que tens?
- 13....! faço-os em novembro... vai lá, vai lá, tira-te daqui.
E desandou por entre os bancos da carruagem em direção ao final do comboio.
La fora ouvia-se o alto-falante : atenção senhores passageiros com destino a linha da Beira Baixa!, etc e tal e coisa.
...
Segurei a saquita de pano (feita pela minha mãe) com duas côdeas de centeio lá dentro, um naco de queijo d'ovelha embrulhado num guardanapo todo manchado pelo unto do molho que saía da chouriça-bocha, e lá no fundo tinha uns figos secos, três nozes e lá fui eu descendo os degraus da carruagem parada na linha de numero um em Santa Apolónia.
- Mal cheguei aos portões de ferro na frente da estação e ....
- Olhóooo Parada da Paródia!!!!,... é o Noticias!... olhóooo Diário Populaaaaar!... Comércio do Porto....olha aqui ó freguês!...
- O ardina gritava tão alto que eu me assustei e fiquei ali encolhido no canto do lado direito da estação atrás da coluna à espera, em vez de ir lá para fora. E também de nada adiantaria porque eu jamais tinha visto o tal Sr Mário.
E ele, o ardina, ia p'ra lá e p'ra cá!.... , p'ra cá gritava Olhó Parada da Paródia, eh o Notiiiiicias!... e na volta tirava mais um jornal da sacola a tiracolo e, compre o Comércio ó freguês!...leve o Parada da Paródia!---- de repente, não mais que de repente, olhou p'ra mim e parou.
- Chegou mais perto e perguntou. Tu dond'és meu filho?
Eu sou de "Caravelas" e não sou seu filho... Sou filho da Ti Julheta e do Ti Zé'rturio!!!
- Está bem, está bem pá, ... mas aatão porqu'é qu'stás a chorar? -
...hummmpfff,...eu estou aqui à espera dum home que vem me buscar!
A minha mãe disse c' o home se chama Mário e é filho da Ti Ermelinda (??) lá de Sueima, ele andou na tropa c'o mou irmão lá na India, sabe?...
- Já entendi mas, oh que que carahhhhhhlo...(o ardina deitou a sacola no chão e continuou), então tu não tens aqui ninguém da tua familia?!...
- não senhor!
Tás com fome? ...- não senhor! (muito tempo depois me lembrei que a última vez que eu tinha comido foram umas alheiras com grelos e batatas cozidas à moda da minha terra lá numa taberna no Porto na noite anterior ali perto da estação - se os leitores desta me derem um tempo, ainda vos contarei algum dia essa outra "CATRAMONZELADA” àcerca daquela que foi a minha primeira noite de emigrante).
Foi então que eu me acordei para a minha primeira situação de emigrante real.
- Estava eu ali!!! - Treze anos de idade... Encostado no canto da estação á espera do tal senhor Mário.
- Comecei um choro triste, profundo, entremeado de soluços que eu os queria parar por vergonha do “ardina” na minha frente mas não o conseguia fazer.
- Era uma tristeza pungente!,... eu feito um pingente, por analogia "um pingo de gente" com apenas 13 anos de idade e já era o meu segundo dia de emigrante!
O dia anterior tinha sido muito pior!...
O “ardina” largou por instantes a sacola dos jornais, (que era o ganha pão dele na cidade grande) abaixou-se na minha frente, olhou-me com os olhos quase tão cheios d'água como os meus e disse;
- Eu também andei lá rapaz! Não chores. Se a tua Mãe disse que o homem vem aqui te buscar, então ele vem!...a nossa mãe nunca nos engana!...
Olha, senta-te aí no degrau da escada, ali fora... não tenhas medo!
Se alguém se chegar perto de ti, pergunta logo se é o Ti Mário! - Se não for, grita por mim.... ele há-de vir com a graça de Deus.
(E veio!!!,...o Ti Mário veio senão certamente eu não estaria hoje aqui escrevinhando esta "CATRAMONZELADA” para vos entreter...)

E eu fiquei ali sentado a imaginar!,...mas que grande "CATRAMONZELADA” que me tinha acontecido, ... como e quando algum dia eu poderia imaginar, ainda no dia anterior de manhã eu saltei da cama tão contente!
!!! êpá,.... vou p'ra Lisboa.
- Lá é qu'é bom!, pá... aqui na terra só tem chuva, gelo, às vezes neve...
Dizem que nas terras altas, é pior!...
- são três meses de inverno e nove de inferno!...
- subir a ladeira das Bouças com 47 graus à sombra em pleno mês de agosto não é nada, se comparado com os dias de fevereiro, que já são do tamanho do tombo dum carneiro, mas escondem o sol um mês inteiro...e fiquei ali sentado!... cada vez mais triste, um choro cada vez mais pungente,... cada vez mais e mais eu feito um pingente, por analogia "um pingo de gente" me sentia acuado ao canto do hall de entrada da estação de Santa Apolônia.

- Foram pelo menos umas duas horas e meia de angústia solitária!.... O “ardina” já se tinha ido embora e, talvez por isso, eu me senti ainda mais triste, mais pungente,...me sentia mais eu, porém apenas feito um pingente, por analogia "um pingo de gente", ali sentado no primeiro degrau da saída da estação!
- Ainda me lembro de olhar para o relógio da estação e depois de uma hora mais ou menos, eu parei de chorar, mas continuei triste. Parei de soluçar, mas não conseguia engulir o pedaço da mordida no pão centeio.
- Muito menos do queijo curtido, duro, bem cheiroso do leite da ovelha, feito com tanto amor e carinho pela Ti Julheta!....
(Ah!... como a minha mãe fazia maravilhas na cozinha).

>>> E... me lembrei dela naquele instante.
Me lembrei dela me levar ao Santo Ambrósio (lá na terra do então desconhecido emigrante Roberto... " O leal") no verão anterior p'ra pagar a minha promessa porque passei no segundo ano do liceu!!!....
E me lembrei dela e,... quando já estava a imaginar a minha "CATRAMONZELADA” por causa de ela me ter metido a emigrante, lá vem então o "home"... o Ti Mário Canha!... eu já o tinha visto de longe mesmo sem saber quem era.
E me chamou a atenção logo pelo aspecto dele todo esbaforido, quando saiu do carro dele, cuja porta abria pela frente e o volante era pregado nela. Esta foi a primeira vez que andei de carro na capital e o velho “Gogsmobile” zarranguilhou em direção ao “Campo das Cebolas”... passamos pela velha “Casa dos Bicos” e lá fomos então a parar numa Leitaria que havia ali nas cercanias da Alameda Infante Dom Henrique.

- O Ti Mário tinha um carro só com 3 rodas. Parou ali do lado da estação que dá p'ró rio onde acaba o campo das cebolas.
Ele deu primeiro uma volta ao carro para ver alguma coisa e depois então veio em direção a mim... Não!, não tinha furado o pneu,não!...nem era o "Citroen" a fazer testes de equilibrio na suspensão! ... o carro só tinha mesmo 3 rodas de nascença e admirem-se!...era fabricado no Brasil.
- Entrava-se nele pela frente. O volante era agarrado na porta e tinha lugar p'ra 3 pessoas (que não fossem do tamanho do Jô)
- Ele (o Ti Mário) saiu do velho “Gogsmobile” todo aflito e enquanto ensejava uma corridinha na minha direção ... oh rapaz!
- Tu és o filho da Ti Julheta lá de Caravelas?!....
- sou sim senhor! (nem precisei gritar p'ro ardina para lhe agradecer, que... a essa hora já se tinha ido embora)
- Peis eh!... a minha mãe mandou dizer que tu vinhas, mas o carteiro só entregou a carta lá em Odivelas hoje de manhã,... e eu nem sabia se era hoje ou se era amanhã que tu ias a chegar aqui!... de qualquer forma eu tinha umas entregas p'ra fazer aqui na Graça, (o Ti Mário era vendedor da "Knorr") e, na dúvida lembrei-me de passar aqui p'la estação.
- Já viste se eu não tivesse vindo!?...
- Tás cum fome???
- não senhor!
(hoje quando recordo que naquele tempo não havia telefone, lá na minha aldeia e muito menos na dele que fica no alto da serra de Bornes.... fico a imaginar o que seria se ele não tivesse ido à Estação de Santa Apolônia!)
- E muito menos tínhamos idéia do recado electrônico ou sequer a música do ... alibábá cagou oh, oh....!!!
- desculpem, eu queria dizer a música do "avisa lá que eu vou, oh, oh"!)....

-Aatão anda cá que vamos ali na Alameda,... que tenho lá um cliente, etc tal e coisa,...
- lá fomos p'ro carro de três rodas e eu me sentei ali do lado das caixas de caldos "knorr", e, desculpem lá, ....aqui termino este meu relato que posso entitular de o “meu primeiro dia de emigrante”, depois eu conto o resto se alguém achar que vale a pena.

Antes porém quero fazer uns apelos!
- Ao Ti Mário Canha; esteja “Voismecê” aonde estivér que me desculpe mas, não consegui lembrar o nome carreto da sua mãe!... afinal eu só a vi uma única vez na minha vida há mais de 40 anos atrás!
- Ao "ardina" (p'ra quem não sabe, era o jornaleiro – o tradicional vendedor de jornais nas ruas de Lisboa) que por algum milagre do meu adorado e respeitado Santo Ambrósio de Vale da Porca, ele... se se lembrar de mim, que entre em contacto comigo a quem dedico esta "CRÓNICA” com todo o respeito e carinho que nunca pude saber seu nome para lhe agradecer a ajuda iluminada que Deus lhe pôs nos lábios na saída da estação!

- Ao Ilustre desconhecido estudante de Coimbra de quem eu também jamais soube o nome... ou a origem dele!,... e que tomou conta de mim no "camboio" entre a Estação do Pocinho e a de Campanhã, no Porto e que me levou àquela taberna algures perto da Estação no Porto, para eu jantar na noite anterior.
(fazia mais ou menos umas 24 horas que eu não engolia coisa alguma!...)
- Se algum dia ele vier a ler esta crônica e/ou, se se lembrar desta viagem que eu comecei lá em Caravelas, passei por Moncorvo ( o meu Pai não tinha como ir mais além do Pocinho e ali me entregou então a este desconhecido!... de quem eu apenas soube que ele era estudante e ia para Coimbra... a estudar, mas naquela noite tinha ele que ficar no Porto e por isso eu tive que viajar do Porto até Lisboa absolutamente entregue à minha sorte...) aqui relatada nesta "CRÓNICA”, creia que tudo farei para o agradecer pessoalmente do mais profundo da minha alma emigrante!
- Ao meu querido pai o Ti Zé Artur mas que era realmente Artur José! (que Deus o tem lá no céu desde 01 de Abril de 1969 - logo tinha que se ir embora no dia das mentiras, meu velho!!!??? – a benção Pai...) cuja última imagem dele eu tenho gravada p'ra sempre na minha memória ao ouvi-lo dizer pela janela da carruagem, que vinha de barca D'Alva, dirigindo-se ao tal estudante: (o trem já em andamento, e eu a pensar que ele ia subir atrás de mim!)...
- Voismecê tome lá conta do meu garoto que vaí p'ra Lisboa, pelo amor de Deus!
... depois dobrou o chapéu nas mãos e virou-me as costas p'ra poder chorar à vontade - já de longe o Ilustre desconhecido estudante de Coimbra ainda gritou; não s'aflija home, vamos com Deus!.... depois sentou-se do meu lado e confessou.
Eu só vou até ao Porto, depois é que vou p'ra Coimbra...aí eu desabei, chorei até chegarmos à ponte da Ferradosa... mas, isso fica para outra "catramonzelada", isto porque; PORTUGAL É ETERNO! E NÓS EMIGRANTES TAMBÉM....Até breve, e nunca se diga adeus para sempre.
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Autor: Silvino Potencio
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Silvino Potêncio
Enviado por Silvino Potêncio em 19/09/2010
Reeditado em 02/06/2015
Código do texto: T2508476
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